quarta-feira, julho 25, 2007

Ler o ler

Antes do meu Verão, que se faz pela linha do Norte, arrumo as contas com os desafios: este, da M em Campanhã.
- A Poesia Toda, do Herberto Hélder. Eu não iria para lugar nenhum deste mundo sem este livro. Já trabalhei cénicamente com o poemacto. Já o li em público outra vez. Com uma única excepção nesta vida, não confio em ninguém, mas absolutamente em ninguém, que não tenha alguma vez estremecido diante de um poema de Herberto Hélder;
-Exame de Consciência, de Somerset Maughan. A minha aventura, ou a minha ideia de que ler é uma aventura, muito se deve a este romancista inglês do qual já há milhares de anos não leio nada. O mundo que ele construiu ruiu em mim, não o escondo. Liza, a Pecadora, Um gosto e seis vinténs, Servidão Humana, Ah King, O Fio da Navalha, são algumas das peças desse puzzle que tornou a minha adolescência um lugar mais suportável. E foi com Exame de Consciência que eu fiz a revisão da matéria lida e tive aquele momento epifânico do encontro do aprendiz com o mestre.
- O Livro por Vir, Maurice Blanchot. As minhas leituras são muito desiguais, muito irregulares ao longo do tempo. Tenho uma absoluta dificuldade hoje em ler romances. É um problema para o qual não tenho solução. Há uns anos comprei a colecção toda do Público, imaginando que ía colocar em dia a leitura. Engano. Sempre que me atirava a um enchia-me de entusiasmo primaveril. Mas depois acumulavam-se em cima na mesa de cabeceira. Nestes anos todos consegui ler apenas de fio a pavio Afirma Pereira e Se isto é um homem de Italo Calvino e meei tantos, tantos . Há no entanto um género de livros técnicos e científicos que lá vou lendo (temas da expressão, do teatro, da dramaturgia, da comunicação e da animação). Nele destaca-se este, de Blanchot. Descobri-o a páginas tantas do Naufrágio com Espectador, de Hans Blumenberg que também me fascinou e que me acompanhou como leitura recorrente durante muito tempo. Hoje tudo isto me parecem palavras sobre um mundo que inexiste. Blanchot desconstrói a literatura, o gesto escrevente, mas, como não poderia deixar de ser, reconstrói o templo. Ficou-me isso dele. Não o templo, mas esta possibilidade de destruir o púlpito e de aceitar, nas ruínas, o oráculo emergente. Eu já não acredito na literatura. Diverte-me por vezes, reencontra-me por outras, é um lugar. Apreendi isso com Blanchot. A descrer da literatura e a reencontrar-me no lugar que o escrever é. Um lugar com vista para a cidade, para o rio, o mundo, o universo interior.
-A Era do Vazio, de Gilles Lipovetsky. Os temas da política e da filosofia interessaram-me desde muito pequeno, numa altura em que era possível ainda conquistar chaves de decifração dos segredos universais. Comecei nisso com um compêndio de filosofia, por uma razão prática: queria argumentar filosoficamente com o meu pai sobre a existência de Deus, de modo a que pudesse deixar de ser praticante dos rituais religiosos (terço, missa dominical). Foi nesse espirito que um dia me maravilhei com O Choque do Futuro, de Alvin Tofller. Antes da Era do Vazio li A Condição Pós-Moderna e o Essencial do Pós-Modernismo explicado às crianças. Eu não gostava do pós-modernismo. Detestava as noites do Frágil e do Alcântara, o estado etílico comatoso, as passereles daquele negro sem destino nem futuro, o narciso como justificação ética. Mas decobri depois, com este livro, eu estava muito mais centrado nas manifestações do pós-modernismo do que no seu violento contributo para o pensamento, tanto mais importante porque assumindo-se como espaço de passagem. Na altura eu pensava que ele era o advento do totalitarismo que hoje tanto aqui me tem ocupado. Não era, não foi. Foi muito mais o tempo onde se engendrou uma possível vacina, se é que isso existe.
-Jean-Christophe, de Romain Rolland. O primeiro livro que me lembrei como romance foi As Vinhas da Ira, de John Steinbeck. Talvez pela implicação das questões familiares, das relaçãos entre irmãos, sempre me li muito dentro desta saga. E Steinbeck para mim é raiva, é lucidez, é atenção. E hesitei sobre os Miseráveis e Nossa Senhora de Paris que me pareceram a literatura em estado máximo de exaltação. Mas eu devo prestar homenagem ao trabalho homérico que foi ler os vários volumes do romance de Romain Rolland. Eu não os tinha todos lá em casa. E por isso andei a saltitar de biblioteca em biblioteca para ler este romance admirável. Menti-vos há pouco quando vos disse que já não acredito na literatura. Acredito em Jean-Christophe.
E agora segue o convite: à Elisa, à Ana Sá Lopes, ao Carlos, ao Apicultor e a uma das múltiplas Oito e Coisa que queiram pegar no desafio.

3 comentários:

cbs disse...

Ai pá... a mim que sou um troncho (se é que isso significa algo, lol) literário...
lá terá que ser :)
abraço de boas férias

Elisa disse...

Joaquim
eu já respondi... alguém já me tinha enviado isso... mas respondi no bebedeiras de jazz... o post chama-se Take Five ;-)
Beijinhos

Mónica (em Campanhã) disse...

então devoraste assim o Somerset M e ainda desancas no romance? o fio da navalha quase me deu a volta à cabeça aos 16 anos (também quis ir, como o Larry, largar tudo - não sei bem o quê - e encontrar-me e perder-me e que alguém me chorasse para sempre) e foi a aurora da minha paixão pelo grande romance.´