Muitos de nós pensam que a soberba democrática contra o Iraque é o princípio do fim do próprio sistema democrático como o conhecemos, ou seja, como o privilégio da razão, da argumentação, da prova, da demonstração. É verdade que o ataque que aí se fez foi mortífero. A manipulação, a mentira, a propaganda, desonraram o sistema democrático. Escrevi-o aqui há muito tempo e como eu, muitos milhares de milhar o denunciaram. É um ataque mortífero mas não fatal. O que vai destruir para sempre o sistema democrático não é que a batota, a perversão da regra democrática surjam à tribuna e possam mentir, manipular, esconder. É um ataque feroz mas aí o sistema imunitário das nossas democracias ainda reage. O que o matará é quando a própria regra democrática se tornar numa regra totalitária. E muitos de nós, a coberto de uma eficácia que não é tão tangível como isso, andam-no a defender por aí sem darem por ela. É bom que aqueles que ainda se lembram do Portugal no dia 25 de Abril de 74, se sentem um pouco à sombra de um grande carvalho, de um grande plátano, e se deixem aí perturbar por esse fenómeno que é uma árvore a entrelaçar-se de verdades: a nossa democracia política assenta na representação parlamentar e esta, reflecte o espectro dos limites da nossa diversidade política: a esquerda e a direita. Há uma constante pressão para que o espectro político se alargue. Há uma míriade de pequenos partidos políticos que estão à porta, tentando entrar. Para além de jogos ocasionais de fragmentação de bancadas políticas defenidas (asdi, prd, independentes) o leque dos partidos fundadores do regime democrático, PS, PCP, PPD e CDS, só se alargou para integrar o produto da modernização da internacional socialista, agora reunida no Bloco de Esquerda, ou a tendência ecologista que em toda a Europa ganhou expressão política e que o PCP soube cativar para também ele se modernizar. Todo este sistema parece por vezes entrópico. Há muitas maneiras de o combater. Algumas delas perversas: uma delas já a conhecemos pela Europa - e por cá só ainda não a tivémos porque Fragas Iribarnes e Le Pens são fenómenos políticos raros - é a deriva nacionalista populista que gritando contra o Estado, grita também contra os partidos e contra os vícios da representação política. A outra, que agora me (pre)ocupa é a do virús do totalitarismo democrático: a deriva totalitária da maioria absoluta como condição política essencial à governação. Ora o que é verdadeiramene essencial à boa governação são boas ideias de governo e as boas ideias de governo, em democracia, constroem-se quer através dos consensos, quer através de discensos assumidos através da realização de políticas previamente referendadas.
Esta necessidade de que haja uma maioria absoluta é um incitamento ao relaxe e à perguiça na actividade política, entendida esta como o trabalho de apontar caminhos, discutindo-os. Estamos a querer habituarmo-nos à ideia de que se não estivermos todos a pensar da mesma maneira, isto não funciona. Ora isso é terrível do ponto de vista da saúde da nossa democracia: porque há regimes políticos mais adequados para o totalitarismo do que as democracias. E é para eles que estamos a habituarmo-nos.
1 comentário:
Joaquim, compreendo o sentido das palavras, das frases, do discurso, mas discordo do sentido do pensamento que procuram construir. Toda a vida a violência - o homicídio, o suicídio, a guerra ... - estiveram presentes, em todas as épocas, em todas as sociedades. A democracia na América do Norte conduz a guerra no Iraque mas, nem por isso, não deixa de ser democracia. A Europa viu, nos últimos anos, alargada a fronteira da democracia e não o contrário. Os estados nacionais, na Europa, convivem com dificuldade, ou deglutem mal, a diversidade étnica, religiosa, cultural, hesitam entre diversos modelos de lidar com as diferenças, inevitável efeito do envelhecimento demográfico, a democracia busca moldar-se a esse desafio. Não vejo a democracia como um regime estático, herdado do pós guerra, vocacionado para alimentar o sonho do "bem estar", mas como um regime no qual é necessário conciliar a justiça e a liberdade. Uma utopia antiga. Mas para tornar essa utopia viável nos sonhos dos democratas e na vida das pessoas é necessário o pão e a vontade de ser livre. A democracia só estar em perigo quando, ao mesmo tempo, faltar o pão e morrer, em cada coração, a vontade de ser livre. Não vejo, não sinto, não compreendo, que essas circunstâncias estejam criadas, ou em vias de serem criadas, o que não exclui as tensões, os riscos, as vacilações, as guerras, as violências, o que, para mim, não é um sinal de "democracia totalitária". Porque a democracia e o totalitarismo se excluem mutuamente. O quer há é um modelo de mandar autoritário, em democracia, que se estende pela europa. Mas esse é o preço a pagar para que possamos continuar a ser livres num mundo repleto de desafios no qual a escravidão vive paredes meias com a riqueza, a informação global esconde a ignorância, o radicalismo se esconde nas virtudes da fé. Não me parece, em suma, que exista esse vírus ...
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