quinta-feira, agosto 30, 2007
Talvez seja a minha cria a pedir-me futuro
De todas as palavras escolho uma: silêncio. Foi ao acordar que percebi que ainda não tinha enlouquecido. Porém a garrafa de gin e o cinzeiro à mesa de cabeceira não me iludiram. Voltei a beber e a fumar. O álcool sempre me arrefeceu o medo, o constrangimento. Ontem não. Ontem não bebi. Dou-me conta disso porque na minha cabeça tudo responde sem algum queixume ao lento toque da parada em que acabam por se transformar os sinos do Convento de São Vicente de Fora. Ainda é cedo e já dormi o suficiente para um corpo que começa a precisar de cada vez menos tempo de repouso. É um paradoxo que a vida faz aos que amam: à medida que temos cada vez mais tranquilidade, que poderíamos cada vez dormir mais e melhor, vemos reduzir as horas que necessitamos para que o nosso corpo retome o fio condutor da ligação à terra, ao mundo. Lembro-me que a certa altura estava na sala, quando de repente soube de que não tinha nenhum motivo para desesperar. A solidão era como que um livro em branco onde eu iria escrever uma a uma todas as causas, todas as consequências, todas as verdades. Claro que ainda não sei ser totalmente desta paz. A minha pele ainda está lascada. Faltam-me partes do puzzle. Mas tenho a conta corrente em dia. Se não for inverno muito depressa consigo ainda recuperar o tempo perdido e lá para Novembro, Dezembro, estarei pronto para o recomeço. Coloco um pedaço de argila na mão. Espremo-a, arranco-lhe uma forma com os teus tecks como se te espremesse a ti também. Gosto das palavras mentirosas, divagantes, a sorrir para o linguarejar. O barro é fresco. Sou capaz de passar nisso horas. Há um rio de imagens a percorrerem-me enquanto esmago o pó que a argila é. Neste momento deixei de querer. Eu sei, é uma espécie de querer que me faz desejar respirar melhor mas no fim da respiração está o despojamento. A vida é apoteose dos sentidos, dos seis, incluindo o tacto. Nunca mais vou ter medo da solidão, prometo a mim mesmo, jura de sangue, o meu. Estou sentado no sofá da sala e penso, a distância entre o eu poder morrer em paz é apenas a de conseguir respirar sem alguma ansiedade. E não é por mim. É pelo estado do mundo. Tal como na teoria das catástrofes, o meu restolhar causa estrago profundo algures não sei onde. Já me morreu a vaidade, a pretensão, a obra, ainda não se me acabou esta sensação de pertença, da necessidade de cuidar. Talvez seja a minha cria a pedir-me futuro.
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1 comentário:
speechless...
obrigada pela partilha.
tanto.
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