sábado, outubro 27, 2007
A lua cheia, o animar a malta, a metafísica, a metafísica e a prof. de inglês e o lugar, onde é que é o lugar onde eu estava antes de nascer?
Ainda ando com a lua cheia às voltas. Hipersensível aos cheiros, às luzes, aos ruídos, às interpelações. E várias vezes pensei se um tipo pode meter baixa de pai. Não pode claro, e ainda bem. Embora ajudasse não forçar as coisas. Por exemplo meter-me no Lidl e, no meio daquela confusão de cores, de luzes, de ruídos, estar a ser interpelado trinta vezes por minuto, ó pai posso. A certa altura percebi que estava perdido senão me dominasse. Uma imagem positiva, pedi a mim mesmo. Não sei porquê, fui buscar a daquele banho que tomei nas ilhas Pi Pi, em Puket, na Tailândia, na minha lua de mel. Chovia, a água estava quente, eu no fim do mundo, ou da minha ideia de mundo, numa ilha deserta com mais dois casais, um guia e o piloto da vedeta, uma fauna verdejante, dois ou três lagartos empoleirados, osgas, milhares de milhares de osgas, lembro-me, da comunhão. Ali, na fila do Lidl, de repente fiquei zen. Ao Pedro começaram-lhe a nascer umas asas brancas, de penugem:
- Pai, estão cinco pássaros em cima de poste. O caçador dá um tiro e mata um. Quantos ficam?
- Nenhum.
- Nenhum?
Faço de conta que estou a pensar, a dar cabo da moleirinha. Se eu dissesse que era velha, ele ía ficar desmoralizado. Não devemos desmoralizar os nossos rapazes.
- Os outros fugiam com o susto.
- E para onde?
- Para longe.
- Não pai. A resposta é, para a China.
- Para a China?
- Na China não há caçadores de pássaros.
Começamos a entendermo-nos. Estou mais calmo. Não me apetece cozinhar, desço à já uzeira e vezeira Mourisca. A certa altura recomeça com as solicitações. Ele está certo, eu sei. Eu é que estou errado. Hoje não estou com condições para estar com ninguém, principalmente com o meu filho. Ele já está mais crescido. Peço-lhe ajuda:
- Olha, vais ter paciência comigo.
- Eu vou animar o pai. - faz uma pausa, saca de mais uma anedota e adivinha. A partir daí é sempre a crescer. Eu correspondo: acaba a sopa quando quer, o segundo quando diz que não quer e a laranja deixa um terço. Digo-lhe que a partir de agora vou tentar fazer isso, se vir que é razoável e que ele faz um esforço para se alimentar, deixo-o estabelecer os seus limites. Na esplanada brinca com o diabo e não o ouço queixar-se de que tem sono, de que quer ir para casa. Pergunta-me:
- As suas amigas que costumam estar aqui ainda não apareceram.
- Deixa estar, não te preocupes.
- Elas se calhar já vêm aí.
- Não faz mal, vamos embora.
- Eu estou bem. Aqui com o meu diabo - é um brinquedo com o qual já tem uma grande convivência e que manipula com destreza -estou super divertido.
Quer animar-me, mais uma vez. Passo. Hoje percebo que ele é mesmo a minha salvação.
À noite, veste o pijama sózinho, vou levar-lhe o leite e despedir-me. Ele abraça-me. O tê-lo aninhado a mim faz-me lembrar dos tempos em que eu o adormecia cantando. Digo-lhe:
-Queres que te adormeça como quando eras pequeno?
- Sim, adorava.
Embalo-o cantando uma canção inventada na hora, as únicas em que não desafino, claro. Depois deixo-o cair na cama. Ele senta-se, já dentro da cama, para beber o leite. Eu recosto-me na cama, ao seu lado. Ele começa a falar de um modo que nunca lhe conheci. Lentamente, com silêncios entre as palavras. Não reconheço o meu filho.
- Isso fez-me lembrar umas recordações.
- Umas recordações?
- Quando andava na tartaruga e na lebre. Um dia que um menino estava no baloiço e eu fui andar de escorrega.
- Lembras-te?
- E depois fui andar de triciclo.
- Eu lembro-me do teu triciclo. Ás vezes ías com ele para a creche. Eu tinha uma peça que ajudava a controlar o triciclo.
- Tenho muito bem essa recordação na minha cabeça.
- Lembras-te de coisas?
- Lembro.
- Eras mais feliz quando eras pequeno?
- Era tão feliz antes como agora.
- Eras?
- Só para dizer que agora percebo melhor as coisas à minha volta.
- O quê?
-As coisas que estão à minha volta.
- Que coisas?
- Tudo. Às vezes fico no pátio sozinho e de repente percebo a multidão.
- A multidão?
- As outras pessoas.
Noto-lhe uma tristeza, parece, uma lentidão. Afinal é ao contrário, uma lentidão que parece uma tristeza:
- Estás triste?
- Não, estava a pensar que eu tive muita sorte.
- Muita sorte?
- Por vir parar assim a uma família...divertida...
- Divertida?
- Só há uma coisa que eu não percebo...
- O que é?
- Antes de existir onde é que eu estava?
Di-lo com uma forma tão interior, tão silenciosa, que eu fico perturbado.
- Onde é que tu estavas?
- Sim, onde é que eu estava?
- Estavas no amor da tua mãe e do teu pai.
-Não mas antes...
- Antes?
- Sim, onde é que é esse lugar?
- Qual lugar?
- Ó pai...onde é que é esse lugar onde eu estava?
Não lhe respondo. Fico a assistir ao espectáculo da metafísica a nascer diante dele.
- É uma coisa que eu não consigo perceber...que lugar é esse onde eu estava - fala muito devagar, olha a caneca do leite, como se empurrasse os pensamentos - eu gostava de saber onde é que fica esse lugar...
- Também não sei, meu filho...
E de repente salta da metafísica onde se tinha empoleirado:
- Há uma coisa que me anda a deixar muito triste...
- O que é?
- A minha nova professora de inglês...não deixa os meninos irem à casa de banho como a outra...
Faz uma pausa. A metafísica de novo:
- Onde é que eu estava antes de existir? Antes de eu ser criado? Onde era esse lugar onde eu estava?
- Não sei...
- Eu acho que se calhar esse lugar é o fundo do meu coração...
- É o fundo de quê? - tinha percebido mal.
- O fundo do meu coração. Onde está a minha família. - grande silêncio - eu não quero que aconteça nada à minha família. Eu farei tudo o que puder para que a minha família fique bem.
Olha para mim a sorrir, está comovido.
- Estás a chorar, meu filho?
- Não. O pai quer chorar?
- Não. Estou feliz, muito feliz. Tenho um filho que nunca pensei ter. Salvaste a minha vida, pequenitates!
Faz-me uma festa na cara, sorri, meigo.
- Quando o pai quiser chorar lembre-se de todos os que gostam de si. Eles vão ficar tristes também.
- Eu estou sempre a rir.
- A sério?
-Não sempre, mas quase sempre. É uma das coisas mais bonitas que eu faço, rir. E dançar. Adoro dançar. Os meus amigos até me chamam o bailarino dos pés sorridentes.
Faz-me uma festa, mas desta vez demora o braço e enrola-se em mim. Depois deixa cair o corpo na cama.
- Dorme bem, amigo, digo-lhe e venho logo para aqui dançar enquanto escrevo, escrever enquanto rio, rir enquanto danço. E quando termino sei que a escrita não agarrou quase nada do imenso que isto foi.
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11 comentários:
Foi imenso e a escrita disse-o.
sabes que eu já me deixei de comentários...a gente deixa-se assim de comentários.. acho.. eu deixei. já não tenho tanta paciência.. ou se calhar não é paciência.. é como se não quisesse escrever. Não que não me apeteça. Não quero. há muito que ando a amarrar a escrita. pronto. (perder-me em justificações para quê?..).
mas vou sempre andando por aqui e eu sei que sabes disso. Mas há coisas que leio, que me enchem o coração. encheste-me o coração ó Joaquim.
Lyra
maravilhosa criança, única!
tem muito para a ensinar, a nós, adultos!
pelo andar da carruagem, ele ainda vai ser mais metafísico que tu. ele disse uma coisa que eu gostava que os meus dissessem e, como não dizem, vou-lhes dizendo eu a eles: que têm muita sorte com a família em que nasceram. mas às tantas, dito nesta direcção, ainda lhes cheira esturro...
Às vezes andamos tão distraídos, que nem percebemos que essa metafísica é feita d dias e momentos como os que contas aqui. Abçs
os filhos! onde estavam antes de nascer? como era o nosso mundo antes deles?
um dia cheio.
Imagino que não. Será no entanto, no futuro, um bom recordatório para o pai e para o filho.
O nosso filho é muito especial, Quim, mas talvez o sejam todos, se os fizerem crescer a ser. Beijos.
Esses momentos são fabulosos e nunca as palavras são suficientes para os descrever. Mas fazem-nos crescer e enaltecem-nos o espírito.
;)
Que privilégio Quim...
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