sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Centro de Saúde de Alvalade

Ligo o meu portátil e penso que há uns anos, quando a estas coisas da saúde vinha pela mão da minha mãe, ir ao Centro de Saúde era sinónimo de seca das grandes. A ideia de seca era já de si atrofiante: um tempo fora desta vida. Não havia nada que se fizesse que não fosse um jogo de cabra-cega com os ponteiros do relógio branco, árido, martelado de quando em quando pela voz metálica de uma funcionária do centro. Nunca me ouviram aqui falar das reformas da Saúde (nem desta forma esguia vou falar sobre isso). Tenho dois excelentes consultores, um no Mal e outra na Linha do Norte, em quem me inspiro para perceber estas coisas. É assim que eu vejo os ministros cairem, os telejornais atiçarem-se, as populações revoltosas e os doentes queixarem-se. Não quero outros intermediários. São eles, ou os deles, que me atenderão daqui a pouco ou daqui a muito, quem sabe. E se não forem eles ou os deles eu vou olhá-los como se fossem e, tal e qual como quando era miúdo e o meu olhar de super-homem transformava o mundo inteiro, também eles, os que não são os meus eles ou os meus deles, se vão apessoando lentamente, numa alquimia de e para vivos, e vão tornar-se em seres doces e atenciosos como aquela médica que agora saiu do seu gabinete com um doente idoso de canadiana e despedindo-se dele, lhe disse:
- Gostei de o ver!
Olhámo-nos a todos contentes. este diálogo que travamos com a vida e com a morte, mediado por dores, maleitas e prescrições, atenuou-se um pouco. A senhora que a custo tinha tirado o anorak do banco vazio para que um senhor de cabelos brancos se sentasse esvaziou-se daquele ódio com que tinha nascido para o dia. As paredes brancas, terríveis como a loucura, coloriram-se. Todos nós acompanhámos a despedida daquela médica e do seu doente e nos esquecemos de que a nossa médica ainda não chegara, de que as aparelhagens roufenhas dos centros de saúde podiam debitar por vezes um Chopin, nem que fossem os seus magníficos quartetos de violinos, que as suas paredes podiam estar abertas à arte, à poesia, de que tudo seria um pouco mais fácil se desenrugássemos aquela fissura que temos no centro da testa.
-Até à próxima.
Disse ela entrando numa outra porta. Argumento mínimo para uma humanidade que também vai aos Centros de Saúde. O resto, deixo-o para quem sabe, ouviste Luís?, ouviste Mónica?

2 comentários:

Mónica (em Campanhã) disse...

ouvi Joaquim. sei que eu própria (palavras como essas, gestos, silêncios) sou o primeiro cuidado que tenho a oferecer às pessoas. é tão fácil e no entanto tão difícil de descobrir (não vinha nos livros da faculdade).

Luís disse...

Ouvi-te sim, Joaquim, foi um prazer ouvir-te.