sexta-feira, abril 25, 2008

Cabra-cega

Não me lembro de alguma vez ter morrido. Algo me diz que se o tivesse feito me lembraria. Pela força do que seria esse acontecimento em mim. É uma dedução lógica. Depois penso, a morte é isso, é o esquecimento total, a impossibilidade de ligar vidas entre as quais o definhar se intrometeu. É uma boa ideia, uma ideia agradável: a morte é uma intromissão. Ou mesmo uma intrusa. É por isso natural que eu não me lembre de alguma vez ter morrido. Se eu já tivesse morrido nunca me iria lembrar. Morrer é esquecer, é quebrar os elos, os laços, os vínculos. Todos os que morreram já se esqueceram da sua morte. É intrigante o trabalho que a linguagem faz ao pensamento: quando comecei este texto estava convicto de que o não me lembrar que alguma vez tivesse morrido fosse a demonstração categórica de que nunca tal tinha acontecido. E agora, no fim do texto, confronto-me exactamente com a possibilidade inversa: a de que o não me lembrar se alguma vez morri poder ser a demonstração irrefutável de que de facto já morri. Afago-me com esse pequeno consolo de alma: a morte não é uma evidência.

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