quarta-feira, maio 28, 2008

Outras vidas

Neste blogue publicam-se textos de homens que se assumem como clientes de prostitutas. Neste, das prostitutas com os seus clientes. O circulo não está completo, claro. Faltam ainda muitas perspectivas. As mulheres que não se prostituem e os homens que não utilizam os serviços sexuais. Eles também são afectos à realidade da prostituição. Há, e haverá sempre, discursos de mulheres que fantasiam sobre o serem um dia prostitutas. Outras, que têm um modo particular de entender a necessidade dos (seus) homens "irem às putas". Para não falar de outras abordagens: o peso da economia do sexo na economia do turismo de alguns países; no modo como esse tema se vai libertando dos seus tabus. Atenho-me apenas ao meu caso pessoal: à forma romântica como enquanto aprendiz de escrevente me relacionei com a mais antiga profissão do mundo.
Costumo dizer por provocação que a primeira - e única - vez que fui a uma casa de meninas tinha oito anos e andava na escola primária em Mafra. Lembro-me que era sábado. Habitualmente tínhamos aulas da parte da manhã e depois eu, o Ferradoza, o Caetano e os dois irmãos da Paz, o Jaime e o Rui, atravessávamos o Rio Cego e regressávamos a casa. Parávamos na Paz onde víamos o Daniel Boone e só depois seguíamos viagem, o Caetano para a Mougueta, o Ferradosa e eu para a Ada-Pera, onde morávamos. Mas naquele dia houve alteração de planos. Correu pela turma de que iríamos à garagem do Manel: a troco de cinco tostões iríamos ver montes de gajas nuas. E assim foi. Na garagem do Manel as paredes estavam cobertas de posters e calendários com mulheres em poses provocantes. O pai do Manel era mecânico e ele andara laboriosamente a apanhar os calendários velhos da oficina e a pespegá-los na parede. Na altura cinco tostões era uma semanada e uma semanada daqueles, poucos, que a tinham. Havia muita coisa, pastilhas, cromos que custavam um tostão. Rebuçados, meio tostão. Imagine-se por isso a fortuna que o Manel acumulou nessa sua primeira incursão como industrial do sexo: uns cem a cento e vinte tostões. Não sei o que é feito dele mas não me admiraria que estivesse convertido num homem de sucesso.
Mas isto foi aos oito anos e não temos oito anos durante toda a vida. Na minha vida, embora não tenha sido por isso que foi pasmacenta, houve um longo interregno sem algum contacto com uma profissional do sexo. Eu já teria vinte e dois anos quando Paquita del Rio se cruzou comigo numa camioneta da Resende que fazia "excursões" do Campo das Cebolas para o Norte.
Por acaso, já a camioneta estava em andamento- Ela entrou e o único lugar livre era ao lado do meu. Eu ia para Caldelas, onde a minha família me esperava para mais uma consoada. Naquela altura queria ser escritor, actor, sei lá mais o quê. Lembro-me que passei umas sete horas, tantas quantas durou a viagem, sem saber o que era verdade na história daquela mulher que fazia strip-tease em Espanha. Sei que quando cheguei a Caldelas me enfiei no quarto três ou quatro horas a escrever, a escrever, a escrever. Escrevi um conto que foi publicado no Diário Popular. Era para ser, numa versão curta, no DN Jovem. Mas umas "mamas" inadvertidas levaram à censura do mesmo por parte de um director ( com indisfarçável incómodo do coordenador do suplemento). Nunca me esquecerei da frase: " quando vim de África peguei nos meus diplomas e tentei arranjar um emprego de secretariado. nunca me apalparam tanto as mamas como quando quis ser uma mulher decente". E até fiquei todo contente. Tinha ganho os primeiros mil escudos por uma obra literária (na secção Um conto por um Conto organizada pelo Baptista Bastos no suplemento de sábado do Popular).
Esse meu contacto com a Paquita foi o princípio de uma relação romântica com aquilo que uma mulher da vida pode representar. Ela era uma mulher sem chulo nem proxeneta. Havia outra frase que haveria de transportar para o texto de teatro "Farol" (publicado nas edições TNSJ /Cotovia, Dramaturgias Emergentes, 2º Volume): " Não ando por aí a dizer que sou marquesa mas digo que a minha vida é verdade!".
Este texto foi uma reescrita de um outro texto, "A Mulher Mistério", e foi criado num atelier de escrita, dirigido pelo António Mercado para o Teatro Nacional São João do Porto, no DRAMAT. Nessa altura tive de ir muitas vezes ao Porto e passava algumas noites sozinho. Nessa altura a minha personagem já não era a Paquita, já não era uma prostituta, embora tivesse trabalhado em bares de alterne, uma realidade que eu desconhecia. Um dia enchi-me de coragem e fui a um bar de alterne que ficava na zona ribeirinha. Como é natural fui logo abordado por uma mulher que me perguntou se eu lhe pagava um copo. Disse-lhe que não, que não gastasse tempo comigo, que por mais esquisito que lhe parecesse eu estava ali para recolher informações para uma peça de teatro que estava a escrever e onde havia uma personagem que trabalhava num bar destes . Que não, que não achava nada estranho. Até acharia bizarro se eu fosse escrever sobre uma mulher que trabalhava num bar de alterne e não fosse lá ver como elas falavam. E que não se empatava comigo, que enquanto não a chamassem queria ficar ali, gostava da minha conversa.
Voltei a esse local mais uma ou duas vezes. Eu sentia-me meio privilegiado por poder estar ali sem ser dali. Há muito que não sentia este género de relação com a realidade, que é aquela de quem escreve e pretende vampirizar as histórias, as ficções que um real normal pode conter. Voltei a encontrar aquela mulher que tinha encontrado da primeira vez. Falou-me daquele estranho mundo. Das poderosas redes de tráfico de mulheres muito jovens, a maior parte delas encarando este eldorado da sedução e da companhia como um passo para poderem estudar, organizar de novo as suas vidas. Falou-me das regras e códigos de protecção muito severos, da separação das actividades de acompanhantes e prostitutas. Tinha uma mitologia muito própria sobre esta actividade e tive a oportunidade de rever alguns dos meus mitemas. Um deles, o mais interessante, era o de que estes homens vinham procurar nestas mulheres o desbragamento sexual que no seus casamentos não conseguiam ter por causa dos férreos padrões morais da nossa sociedade. Pode ser que seja isso que acontece. Mas não foi isso que eu vi. O que eu vi foi homens de meia idade, com alguma posição económica que vinham aqui para falarem com uma mulher. Pagavam-lhes bebidas e não das baratas, não as despachavam com uma cerveja, traziam a garrafa de champanhe e deixavam-nas beber e pedir mais só para estarem ali a conversarem com aquelas mulheres. Lembro-me de ter pensado que se as mulheres soubessem o comportamento dos seus maridos, da forma como eram dóceis, ternurentos, amáveis, ficariam estarrecidas. É claro que já os estava a imaginar a contar as suas façanhas aos amigos: que tinham feito, que tinham acontecido, que tinham sido umas autênticas feras. Leõezinhos. Leõezinhos dóceis e meigos.
Lembro-me de como a minha interlocutora achou graça a este meu ponto de vista. Ela era muito benevolente com eles. As mulheres que tinham em casa não lhes dariam espaço para soltarem este seu lado amável, manso. E se as mulheres os deixassem as vidas que tinham em casa não o deixariam. Vive-se muito mal por este mundo fora e muitas vezes não é por despeito. É por que não calhou. Porque não calha. E não calha muitas e repetidas vezes. Já não me lembro das caras das mulheres com quem falei. Também não foram muitas as noites que passei no Porto. Lembro-me dos ambientes. Dos risos das jovens brasileiras que ainda tinha esperança de tomar o pulso na sua vida. É claro que o mundo do alterne é diferente do mundo da prostituição e bem pouco conheço de um ou outro. Sei apenas que essa ideia romântica sobre esse mundo oblíquo do sexo enterrei-a no "Farol". Falamos de sub-produtos da escravidão, variantes não muito imaginativas da exploração do ser humano por outros seres humanos. Aprendi no entanto algo muito importante nas minhas noites passadas naquele bar de alterne do Porto. Saía de lá mais humano, pensava, mais perto da escrita a sério. A escrita-testemunho.

Sem comentários: