Nossa Senhora da Solidão

- Há uma coisa que noto: tenho cada vez menos capacidade para gerir a solidão.

Disse isto entre um banalíssimo bolo de banana e um descafeínado, no Vertigo.

- Incomoda-te?

- Sim. É estranho, vivi a minha vida sempre com uma grande capacidade para estar só, para querer estar só.

- O que é que sentes?

- Uma grande intranquilidade.

- Andas a dormir mal?

- Se fico só.

- Se ficas só dormes mal?

- Precisas de repetir tudo o que digo?

- Desculpa.

- Eu é que peço desculpa.

- Eu também me sinto só. Chego a ter pavor da solidão.

O que é que se passa connosco? Que monstros nos perseguem?

- Achas que é um mal geral?

- Tranquiliza-te pensar que é um mal geral?

- Não sei. E a ti?

Rimos que nem uns patetas.

- De que é que estás a rir?

- Não sei. E tu?

- Também não sei.

A solidão é uma doença? E é a doença de quê? Do outro que nos falta? O que é que acontece de verdadeiro numa solidão?

- Pensei em matar-me.

- Eu não era capaz. Nunca.

- Eu também não. Mas pensei o que aconteceria se me matasse.

- Morrias.

- Sim, mas ficava mais ou menos só?

Há dentro de nós uma programação biológica do bem e do mal, disse o António Damásio à Clara Ferreira Alves. Não retive muito mais da entrevista a não ser que ela o tratava por tu. A verdade é que pouco mais retive do jornal. E nem fiquei chateado. Até achei, este sábado li que me fartei do Expresso, foi bom.

- Se tu morreres também morremos nós. Todos os que tu vês. Tudo o que tu vês morre também com a agonia da tua percepção do mundo. E essa morte que acontece na tua morte reflecte-se em nós.

- Eu não vos vou deixar morrer nunca. Sou fiel à minha compreensão do mundo, estabeleci com ela uma cumplicidade fraternal.

- É isso que nos sustém neste grande circo de papel.

- Ainda não me falaste verdadeiramente da tua solidão.

Nem vou falar, pensei, enquanto me levantava e saía, deixando o meu interlocutor imaginário sentado na cadeira.