quarta-feira, julho 09, 2008

Alzemado

Não sou (ainda) daquelas pessoas que não emprestam livros. Já perdi um livro raro, porque de um amigo com uma dedicatória, e também umas Lendas da Guatemala de Miguel Angel Asturias, mas também tenho um Exercícios de Estilo do Luís Pacheco, uns Ensaios de Brecht, entre outros, a dizerem-me que quem vai à guerra dá e leva. Mas costumava ficar irritado quando planeava usar um determinado livro para um trabalho e de repente ele não estava lá. Chateava-me esquecer-me assim onde estavam os livros, a quem os emprestei. Anteontem, nos trabalhos preparatórios de uma oficina de escrita, precisei de Escenas sin limites de Sanchis Sinisterra. Procurei-o por todas as estantes. Nada. De manhã fui comprar um do mesmo autor para poder substituir o primeiro. E ontem procurava La Crisis del Personage en el Teatro Moderno de Robert Abirached. E também a Criação de um Papel, de Stanislawski. Nada. Desapareceram da minha estante. Agora já não me irritei. Soube-me bem esta ideia da minha vida coberta de neblina, e eu a olhar para ela como se uma pintura em movimento. Agora até quero que demore a encontrá-los. É como se tivesse preso, algemado, a uma determinada reconstituição. E essa reconstituição são os meus dias, quer dizer, serão realmente meus, serão realmente nossos os dias que já vivemos? Ponho-me a lembrar-me de quem os levou. A pouco e pouco vou lembrando-me de quase tudo. Sei que o pretexto foi o livro de Abirached. A pessoa que o levou estava a fazer um trabalho ( de um campo que não tinha a ver directamente com o teatro, seria ou sociologia, ou literatura) sobre a personagem. Creio que falámos na esplanada e foi o título do livro de Abirached que lhe suscitou a curiosidade e o interesse. O de Stanislawski e o do Sinisterra já foi sugestão minha. Lembro-me que foi na casa da Vila Sousa porque me recordo de ter tirado o de Abirached da estante por cima da porta da casa de banho. E de, como sempre, me terem caído em cima uma chuva de outros livros. Era assim aquela pequena casa com vista para um rio magnífico, esta visão que mantenho ainda na porta de entrada do respirar, um sitio onde cada coisa que se colocava equivalia a uma outra que saía do sítio. Ou que nos caía em cima. Às vezes eram pesadas. Desta vez não. Apenas os livros que amparavam a Crisis del personage. Nunca o li. Tal como O Retorno ao Actor, creio que de Raymond Aron, comprei-os apenas por causa do eco, da reverberação que o título fez em mim sacudindo-me uma data de imagens interiores. E agora aqui estou eu às voltas com a memória. Vejo tudo, os gestos, só não vejo as faces. Parece-me que era um casal. Creio que um casal novo. Alguém que conheci fortuitalmente, provavelmente. Que empatizou com o título. Não me recordo. Nem me importo. Soube-me bem esta viagem a noites assim, que começam numa esplanada e acabam numa estante de livros.

6 comentários:

blue disse...

quando não encontro um livro, fico apenas muito zangada comigo, por o ter perdido de vista. e, se me lembrar de a quem o empresstei e não mo devolveu... eh, eh, fico mais irritada ainda.

:)

Mónica (em Campanhã) disse...

todos temos alguns desses livros que não nos pertencem... eu sou possessiva com os meus, mas não me adianta nada, porque também sou vaidosa deles, e preciso desesperadamente de os partilhar e lá estou eu a emprestar outra vez um livro preferido.

gostei de saber que não sou a única que já comprou livros pelo eco do seu título (ou pela sombra da sua capa).

A indecisa disse...

Adoro e detesto emprestar livros
Adoro partilhar o que gosto.
Detesto ficar sem o que gosto, principalmente depois de lido, sublinhado, rassurado etc etc.
Hoje em dia tenho uma lista dos meus livros (até pq já aconteceu comprar repetidos, visto ser compradora compulsiva e não conseguir acompanhar com a leitura) em que à frente escrevo a quem emprestei, e só empresto a quem tenho o telefone.

JPN disse...

isso fez-me lembrar um célebre livro sobre dreamweaver que ainda tenho na minha estante...que vergonha, indecisa!

A indecisa disse...

Não é desse tipo de livro de que falo!
Eu sei que tens esse livro, ainda não preciso dele.

Bjs

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Eu perco-os cá em casa, às vezes empresto com gosto , outras nem tanto , fixo nomes num papel , estabeleço prazos ... mentira sou incapaz de não emprestar um livro, mas gostava de ser capaz , agora não estava em papos de aranha como tu ... O que me acontece é comprar edições de bolso ou usados quando não os encontro e deles preciso com urgência , nem sempre é fácil , é quase como desarrumar a casa toda , o tempo perdido é quase igual...
abraço Quim