Eu não devia falar sobre economia. Aliás, eu e muitos de nós devíamos conseguir resistir a falar de economia. O problema maior é que também parece que os economistas puros e duros não são confiáveis. A maior parte deles eles fala de Wall Street como se ela fosse um eixo do mal. Nesse sentido a crise financeira, económica, é também uma crise de credibilidade e dizê-lo é terrível porque de repente nos lembra, nos acorda para o modo como a sociedade do espectáculo substituiu a confiança e a credibilidade, pela verosimilhança e pelo especioso.
Não falarei da crise então. Ou não falarei da crise de um modo diferente daquele que nos últimos tempos me tem, quase obsessivamente, ocupado: o da linguagem, o da comunicação. Em primeiro lugar o conceito de crise. Não podemos entender o trabalho ideológico que o conceito de crise faz senão começarmos por reconhecer que a nossa vida está toda subordinada, acriticamente, à ideia de estabilidade. Bem podem alguns modelos pedagógicos, científicos, artísticos perceituarem alternativas a este modelo ideológico, com o culto da incerteza, da dúvida, da mudança, da instabilidade, da própria crise (lembro-me de cor, de Politica e Modernidade, de José Bragança de Miranda): é indiscutível a supermacia ideológica do conceito de estabilidade como se ele fosse a natural tendência da vida humana. A estabilidade é um conceito do qual nos apercebemos através de alguns parâmetros: o do equilibrio, o da regularidade, o da repetição. Há um conceito que também trabalha no mesmo sentido do da estabilidade, o da normalidade, mas que ficou muito fragilizado pela forma deficiente como conseguiu responder ao facto do desenvolvimento da diversidade dos comportamentos sociais não implicar, à partida, uma perda dos padrões de coesão social e estabilidade.
A minha insistência na tentativa de pensar a ideia de estabilidade, tem a ver com este modo muito curioso das nossas sociedades reagirem ao desiquilibrio, à irregularidade, à instabilidade: criando um pathos, um clima dramático, a que chamamos crise, que introduz estabilidade no sistema, estabilizando a ideia de instabilidade. Há semanas que todos nós pronunciamos a palavra crise e estabilizamos aí num cenário contractivo, tensionado, até, tendencialmente depressivo. Chamamos um conjunto de especialistas, comentadores, dedicados aos temas das finanças (depois, mais tarde ou mais cedo, a crise desaparecerá (o que será critico para aqueles que se especializarem neste produto ideológico, a crise) substituindo-os pelos especialistas ou comentadores do futebol e os programas de frivolidades mundanas).
O conceito de crise tem um trabalho perigoso na sociedade actual: por um lado abre o caminho para a manipulação, para a indução da necessidade absoluta de reagir, e geralmente para uma reacção inscrita num quadro de hipóteses muito restritas (tanto que por exemplo em relação ao plano da administração Bush a diferença entre os democratas e os republicanos só conseguiu produzir sentido na forma como os primeiros exigiram que a intervenção do Estado tivesse como contrapartida a entrada no corpo accionistadas empresas apoiadas. O que é muito pouco.) Aquilo que se chama a recente concertação europeia ainda não mostrou ser uma forma de abordar um problema complexo com soluções diferenciadas mas uma espécie de mimetização das mesmas soluções. O que é ainda muito pouco. Disse que o conceito de crise tem um aspecto perverso, o da criação de um pathos que necessita rapidamente de uma acção para evitar a tragédia quando afinal a tragédia poderá estar essencialmente aí, na dificuldade de encontrar uma forma de pensar a situação tensa e dramática dos mercados mundiais. Tem também aspectos benignos: ele cria um clima que favorece a tomada de consciência dos problemas. Tem sido recorrente nos últimos dias a ideia de que os problemas que estamos a viver já vinham sendo detectados há anos por inúmeros especialistas em politica económica e que toda a gente fez ouvidos de mercador. A afirmação de que ninguém ligou é muito intrigante. De facto a maioria de nós - nem mesmo os que têm blogues e farejam tudo o que é informação para poderem escrever um post- não têm por hábito ouvir os economistas puros e duros nas suas conferências, encontros e reuniões. São apenas outros economistas os que ouvem os economistas puros e duros. Alguns desses economistas estão nas empresas, outros na administração pública, outros nos partidos. O que quer dizer que o Estado, o mundo empresarial e os partidos não os ouviram. Outro aspecto benigno: é nestes momentos que parece que podemos viver de outro modo em relação ao ter e ao ser. No papel que o consumo pode ter nas nossas estratégias de afirmação identitária. Todas estas coisas podem ser de outra maneira. A exploração do ser humano pelo ser humano, por exemplo. Deveremos repetir lenta e exaustivamente como se acreditássemos piamente no que estamos a dizer: podemos viver de outro modo.
Ora isso é uma grande ruptura epistemológica com o paradigma do consumismo desenfreado. Tenho como muitos a minha força de trabalho hipotecada através de créditos disto e daquilo mas há pouco, sem um tostão no bolso, senti que precisava de algo. Entrei numa loja dos trezentos e passei pelas prateleiras, agarrando em objectos incríveis de formatos e cores estranhas. Olhava para eles e transferia neles a minha necessidade de comprar, de comprar coisas. Saí um bocadinho mais rico e perfeitamente satisfeito, apto a satisfazer as minhas verdadeiras necessidades. E que são tão poucas. Devia haver lojas dos trezentos para desabituação consumista. As pessoas entravam. Olhavam as montras e em cada objecto procuravam a peça do puzzle que bate com o aparador, com a parede, com o escritório, com quintal lá de casa. Podiam até agarrar nas coisas e dizer as frases tipo do consumidor dependente: é tão giro, não é? ist ficava tão bem lá em casa ao pé de. Não pagavam mais por isso. Os objectos podiam aliás ser hologramas tecnicamente preparados para fornecer estimulos sensoriais. Eu sei, este texto está caótico mas eu bem avisei, não devia meter-me a falar de economia.
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