segunda-feira, abril 20, 2009

O Sr. Feliz e o Sr. Contente

Quando tento perceber a actuação política de Cavaco ou Sócrates começo por partir do princípio de que ambos são políticos com alguma experiência e que não se deixarão enredar em comportamentos que eles próprios não tenham previsto. E por isso poupo-me à interminável discussão sobre a tensão entre São Bento e Belém. É um filão de que me recordo, começou logo com Spínola e os primeiros Governos de Salvação Nacional e que se reflectiu também nas relações entre Costa Gomes e Vasco Gonçalves, entre Eanes e Mário Soares, entre Mário Soares e Cavaco, entre Sampaio e Durão e muito especialmente Santana Lopes. Tanto que o que toda a gente estranhou - por estar de certa fora da cultura política para governos cuja base de apoio política é diferente da do Presidente da República - foi a tese da coabitação estratégica promovida pelo actual inquilino de Belém.
Esta interminável discussão sobre a tensão entre São Bento e Belém é também um inesgotável filão noticioso a que a nossa sociedade hipermediatizada não podia deixar de trabalhar. Acresce dizer, que os políticos, e como referi deveremos encarar Cavaco e Sócrates como dois políticos que têm não só uma grande experiência como uma razoável capacidade de influência da agenda mediática, sabem que assim é, sabem que assim as suas declarações serão lidas, e têm gabinetes especializados em trabalhar os impactos mediáticos das suas actuações políticas, pelo que eles também usam ( e muitas vezes abusam) do recado disfarçado ou do remoque subtil. É claro também que o modo interminável com que parece colocar-se a discussão sobre a tensão entre Belém e Sócrates advém da forma como somos levados a esquecermo-nos de que essa tensão se revela em primeiro lugar pela tensão que existe entre a base de apoio que sustenta um e outro, em segundo lugar pela diferente função do presidente e do governo (por isso chegámos a ver tensão entre Sampaio e Guterres, da mesma família política). Por último nestas operações preventivas para uma análise, poderemos pensar que tanto Cavaco Silva como Sócrates, tem alguma dificuldade em perceber a realidade para além do prisma de análise para que, afincadamente, se prepararam e especializaram.
Sendo assim, quando analisamos o que cada um disse, poderemos tentar perceber as coisas mais pela substância daquilo que cada um disse, menos por uma eventual reactividade de um face a outro. Entre o Sr. Feliz e o Sr. Contente, agora ambos preocupados, vai um país e esse país somos nós e temos alguma maturidade para podermos extrair a melhor consequência da análise que fazemos. Não tenho acesso ao discurso de Cavaco na sua integra mas pelo que pude ler, ele exortou os empresários a uma maior responsabilidade social e a uma menor submissão ao poder político e as suas declarações mais enfatizadas foram as de que "seria um erro muito grave, verdadeiramente intolerável que na ânsia de obter estatísticas económicas mais favoráveis e ocultar a realidade, se optasse por estratégias de combate à crise que ajudassem a perpetuar os desiquilibrios sociais já existentes".
Ora, estas declarações, e por isso a esquerda em bloco, e não apenas o bloco de esquerda - para além de um silêncio dos socialistas - manifestou o seu apoio ao discurso de Cavaco criam um clima muito favorável à actuação do Governo Socialista, e muito principalmente de um Governo Socialista que tem na pasta do Ministério do Trabalho e da Segurança Social um dos seus maiores pesos pesados. E podem ser até lidas em contramão com o pensamento de Cavaco Silva, quer enquanto governante quer enquanto presidente, já que ele sempre deu uma grande preponderância, e foi muitas vezes referenciado por isso, às politicas que se destinavam a produzir bons resultados económicos em desprimor de políticas sociais.
Das duas uma: ou Cavaco concretiza a sua crítica e avança, no sentido que vem defendendo Manuela Ferreira Leite sobre a crítica aos grandes investimentos do Estado ou mantendo-a assim vagamente, cria um tapete, uma almofada, quer para o incremento de políticas marcadamente sociais, quer para um discurso sobre - como tanto gostam de dizer os politólogos actuais - uma nova geração de políticas sociais, o que, em ano eleitoral, poderá vir a ser um grande presente.
Caso Cavaco concretize a sua critica, o que não creio, até porque isso o obrigaria a passar a um limite em que grande parte do País descoincide da sua análise político-económica, este exercício pode sair-lhe caro, não só porque estes grandes investimentos também podem ser defendidos como uma peça importante para uma revalorização económica do país - e aí Cavaco estaria novamente contra Cavaco já que o que o singularizou e ao seu ministro Ferreira do Amaral foi a aposta na pavimentação do país, melhorando os seus fluxos de circulação - o que o obrigaria também a uma necessidade de concretização que o colocaria num plano, o executivo, onde Cavaco seria facilmente descredibilizado. É de lembrar que no mais recente caso de tensão institucional entre Belém e São Bento, o Presidente saiu fragilizado ao parecer dar excessiva importância a uma coisa que para o comum dos cidadãos pouca relevância tinha. Além do mais, Cavaco apareceria assim muito colado a Manuela Ferreira Leite o que possibilitaria a Sócrates, sempre que o quisesse confrontar, olhar apenas Manuela Ferreira Leite (o que já aconteceu, em relação à critica à politica do pessimismo, do bota-abaixo ou da critica fácil).
Cabe perguntar: se é assim tão auspiciosa a critica de Cavaco porque é que foi tão dura e imediata a resposta de José Socrátes? Nesse aspecto estou dividido até porque a análise substantiva do que disse Sócrates é tão negativa que dificilmente encaixa do conhecimento e experiência politica do primeiro ministro. Ou seja, se ele disse apenas o que disse, é tão mau - embora hábil politicamente - que pode querer dizer ou que Sócrates foi atingido no seu discernimento pelas agitações em torno da sua honra e bom nome, ou que está a fazer por aquela fase em que os políticos, no auge do seu poder e da sua influência mediática, começam a perder um pouco o controle sobre os comportamentos políticos, não suportando vê-los escrutinados pela opinião um pouco mais aversa.
Não me parece que o tenha sido. A evolução do seu comportamento face ao caso Freeport, nomeadamente a de, depois de ter prestado os esclarecimentos que entendia suficientes, constituir a defesa na justiça da sua honra e bom nome, parecem demonstrar que ainda está no auge das suas capacidades políticas.
E sendo assim Sócrates poderá , habilmente, ter criado um facto político - que não só diminuiu o impacto político das declarações ao Presidente, como também desviou as atenções sobre Sócrates para o plano político - que permitirá que, quando vier a ser confrontado sobre o real significado das suas declarações, possa dizer que não, é claro que não estava a falar do Presidente, com ele estamos em sintonia e até já temos um novo cabaz de políticas sociais para reforçar a coesão social do país na altura de crise, era contra aqueles que se escudam na situação de crise para desqualificarem as soluções que antes promoveram, só por pessimismo, por serem do bota-abaixo.
É claro que esta habilidade política não me convence e lamento-a, até porque, parafraseando José Sócrates, o que o País precisa neste momento é mais a tessitura do diálogo que crie um suporte às redes de decisão, é menos o sinal de arrogância política que o conteúdo da sua rápida resposta constituiu.

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