domingo, maio 03, 2009

Para um mundo um pouco mais (im) perfeito

Anda na blogosfera que eu gosto uma tristeza no ar pela anunciada morte de "O Mundo Perfeito". Entre caixotes, é assim que estamos agora, o meu primeiro impulso é para a incredulidade, a evidência das coisas do nosso mundo físico dir-nos-à que um blogue que dá tanto prazer a quem o lê como a quem o escreve não pode acabar. Mas a evidência das coisas dos nossos universos perfeitos que são os blogues tem demonstrado o contrário. Optimista por natureza seria até capaz de ficar contente por O mundo perfeito ter acabado. Tal e qual como agora, ao desempilhar os caixotes - e ao pensar que tenho finalmente um ninho para escrever, para amar e viver - sei que daqui em diante este respirar estará cada vez mais condenado a algumas manifestações de afecto, de simpatia ou de alguma hipersensibilidade política, cultural ou social que a espuma dos dias me trouxer. É uma outra vida em vez desta. E fico assim contente pela Isabela. Ela talvez não o saiba, ou não o saiba ainda, mas com o passar dos tempos terá de voltar à escrita, a escrita que nunca a abandonou, tanto na leitura como no escrever, nestes últimos vinte e tal anos em que, depois de nos termos encontrado no DN Jovem, nunca mais nos vimos. Na altura a Isabela coleccionava tantos prémios de escrita como o José Agualusa, o José Carlos Barros, o José Riço Direitinho, isto só para citar alguns dos que na estrada da literatura se fizeram nomes de pôr na estante. Lembro-me bem como ela escrevia. Escrevia à Duras, pensava eu, acho que nunca lhe disse, eu achava que ela escrevia à Duras antes de escrever à-ela-mesma. Eu tentava escrever à Virgílio Ferreira (ainda esmagado pela comoção com que tinha lido a Manhã Submersa, que me fazia lembrar o livro que meu pai começara a escrever sobre a sua vida de jovem seminarista). Havia quem escrevesse à Maria Teresa Horta, à Dinis Machado, à Saramago ou, os mais ousados, à Lobo Antunes, sendo que posteriormente já havia sub-estilos em que havia jovens imitadores do estilo de Agualusa, Riço Direitinho, Teresa Vale e Isabel Almeida Santos. Dos vários exercícios de estilo que o DN Jovem exibia o de Duras era sem dúvida o meu preferido. Por tudo. Por permitir uma ligação directa à alma, à poética do íntimo, ao jorro forte como um rochedo. E principalmente, por ser aquele que mais rapidamente me provocava imagens teatrais. Fosse lá pelo que fosse o certo é que de todas as grandes escritas do Dn Jovem a única de que verdadeiramente me lembro é a da Isabela. E sempre me perguntei porque é que, ao contrário de outros, não a encontrava nas bancas de jornais, nas estantes das livrarias onde outros, com igual talento, iam fazendo pela vida e pela obra. Foi por isso uma alegria quando soube que O Mundo Perfeito era dela. O Mundo nunca foi um blogue da moda, daqueles que vomitam visitantes e páginas vistas. Mas foi - e digo foi para que seja muito claro o meu contentamento com o fim do blogue - um espaço de culto para muitos que tem na literatura um lugar de confronto, confronto de um consigo próprio. O que é que temos a partilhar uns com os outros que não seja essa desconcertante capacidade de nos rirmos das nossas próprias entranhas? Por isso seria até capaz de ficar contente com o facto de O Mundo Perfeito ter acabado. Sabendo que a Isabela nunca deixou de ler e escrever nestes anos todos - se não como poderia escrever como escreve, já não à Duras mas à ela própria, o seu universo tangível, o emprego na fábrica de parafusos (que rica metáfora Maria de Lurdes Rodrigues?!), os gatos, a mãe, as vizinhas, os homens e o intangível, essa África chula, negra, que se alojou dentro dela como se fosse simultaneamente veneno e antídoto - também não é agora, que sabe o impacto que a sua escrita tem em nós, que o deixará de fazer. Os parafusos que fiquem lá muito bem governadinhos à volta com os magalhães, os gatos não atrapalham de tão independentes, nós somos as suas flores, as flores que com instinto canino ela cuidou, cuida e cuidará. Eu creio que durante estes vinte e tal anos nunca publicou nada porque teve medo da vaidade que como uma lapa se atrela sempre, inevitavelmente, a estes exercícios de estilo. Quem escreve para se resolver sente-se atrapalhado se de repente algo como a vaidade se interpõe entre a escrita e este desejo de rasgar a pele, a própria carne. É um problema que a maior parte dos escritores plasmados nas estantes das livrarias já resolveu, de uma forma ou outra mas que continuará sempre a atacar os que não têm obra publicada. É por isso que agora, setenta seguidores, milhares de páginas vistas, uma folha de comentários sempre presente e militante, Isabela já sabe que tem de escrever, não por ela, mas por nós. E, como é uma mulher de palavra e nem que se roa até ao osso vai fazer tudo para não voltar ao Mundo Perfeito, isso, o saber que precisamos dela, do que ela escreve, dar-lhe-à força bastante para se atirar a escrever e voltar ao nosso convívio. Já agora que não seja n' O mundo perfeito mas na nossa estante, na nossa literatura, onde tanta falta faz. A nossa fome e a nossa sede serão a sua coragem, tenho a certeza.
Ditas as coisas assim, não gostei que O Mundo Perfeito tivesse acabado pelas razões que acabou. Não discuto as razões da Isabela. Por vários motivos. Primeiro, sabendo que existem blogues ultranacionalistas, nunca considerei que eles interferissem com o meu espaço vital. É uma bizantinice minha certamente. Se os vir a manifestarem-se na rua corro para casa, fecho as pressianas, instalo vidros duplos, e tento por todas as formas afastar as imagens negras que estes movimentos me provocam. Sou muito sensível à rua, deve ser o meu feitio mediterrânico. Mas na internet não. E acho que têm todo o direito de o fazer e que em nada os apouca a fraca conta em que tenho as suas façanhas. Não os acho reles, imorais, e, com a ajuda de Arno Gruen, há algum tempo que os deixei de considerar (os únicos) doentes. Mas saber que algo que eles fizeram, retirar um texto da Isabela e publicá-lo num dos seus blogues ultranacionalistas, interfere tanto comigo que me vai vedar ao contacto com um blogue de que tanto gosto é como se de repente eu descobrisse que lhes estou vulnerável.
E isso chateia-me, muito, profundamente e não posso deixar de ficar um pouco irritado com a Isabela. Talvez não fosse caso para tanto. Não conheço o texto em causa mas já tinha lido alguns textos da Isabela sobre a questão colonial que quase me tinham incomodado. Tinha até pensado, se os visse num outro sítio, numa outra hora e assinados por outro nome acharia que seriam apontamentos manchados pelo ressentimento que anima muitos dos blogues ultranacionalistas. E tive isso como mais uma das façanhas da escrita-coragem da Isabela: o de ela arriscar que pudesse ser tida como uma racista, uma ressentida do império colonial. Há uns meses atrás publiquei aqui uns textos sobre o casamento entre homens do mesmo sexo em que corri o risco, assumido, de poder ser tido como um defensor de um pensamento retrógrado sobre o assunto. Não sei se alguma vez alguma vez alguém os publicou nalgum lugar para defenderem coisas em que não acredito. Não tenho nada a ver com isso. Se alguma vez encontrar alguma coisa minha num blogue que defenda a homossexualidade enquanto doença, não vejo como me possa insurgir mas tenho a certeza de uma coisa: mais facilmente me perguntarei como é que aquilo que escrevi pode servir para defender aquilo em que não acredito do que exigirei que só pessoas politica e socialmente bem comportadas possam usar os meus textos.

7 comentários:

Isabela Figueiredo disse...

Pá, que grande texto o teu!

"Fosse lá pelo que fosse o certo é que de todas as grandes escritas do Dn Jovem a única de que verdadeiramente me lembro é a da Isabela."

Bolas, Joaquim Paulo, isto comove-me!

"E sempre me perguntei porque é que, ao contrário de outros, não a encontrava nas bancas de jornais, nas estantes das livrarias"

Bem, eu nunca quis ser escritora, embora quisesse escreve e gostasse de o fazer. Quando acabei o curso precisava de trabalhar, de me sustentar. Isto era o que a família esperava de mim. Não podia andar a arrastar-me por casa numa de escritora, se é que me entendes. Tinha de me fazer à vida. Trabalhar. Ora o meu trabalho sempre foi muito de se fazer em casa, o que significa não ter tempo livre para mais nada, porque a vida fora e dentro de casa é trabalho. Nos últimos 20 anos trabalhei muito, muito, muito, com uma dedicação absoluta, que é a minha maneira de fazer tudo na vida.
Não me pus, portanto, a escrever, porque tinha de trabalhar e a escrita não era trabalho. Não pagava bifes.
Não teve nada a ver com vaidade. E eu mal sabia escrever, para dizer a verdade.

Depois, por outro motivo muito prosaico: não tinha sobre que escrever. Não tinha um tema. Precisei de crescer para compreender o que tinha a dizer. Esse tempo em que trabalhei que nem uma louca foi bom para me encontrar como pessoa e serviu também para me definir a vários níveis.

Não me vejo como uma escritora, mas como uma cronista e comentadora. A crónica é um género visto como menor, mas acontece que é nele que me safo bem, e gosto. E adequa-se ao blogue.

Sobre o resto, não vale a pena alongar-me. O MP terminou, e eu cá tenho as minhas razões para o ter feito como fiz.
Como já fiz saber, outro blogue se seguirá, noutros moldes. Por agora, vou reflectindo.

Beijos. E obrigada por tudo.

JPN disse...

Ok, que venha outro. E como tu também penso o mesmo da crónica. Sempre gostei dos jornais que tinham cronistas fortes como o Namora, o Abelaira, o Miguel Esteves Cardoso, o Sousa Tavares. Beijos

Anónimo disse...

Que grande texto (dos dois), digo eu! Aqui venho, novamente, manifestar todo o meu apoio à Isabela e á decisão que tomou. Só espero que nos faça saber, através dos amigos de outros blogues, qual o endereço do novo blogue. Mal posso esperar. Volte depressa.
Beijinhos
Inês

Carlos disse...

Cá aguardamos esse outro blogue| Quando surgir, diga qualquer coisa.

CCF disse...

Eu compreendo muito bem esses textos da Isabela sobre África porque cresci como ela nessa cultura colonialista. Descolamos dela com a mesma vontade com que ela nos ecoa na pele, como se essa memória habitasse os nossos poros. Mas engana-se quem vê na projecção pública dos nossos fantasmas(como custa perder o lugar da nossa infância...) algum desejo de regresso a um passado que de que não temos verdadeiramente saudade nenhuma. Mais: racionalmente creio que ela, como eu, deve acreditar que nada há de mais aterrador do que um povo declarar sua a terra de um outro, declarar seu um lugar que nunca lhe pertenceu. Nada há pior do que um povo se julgar melhor do que outro, atendendo à cor da pele. Os nacionalistas que usaram o texto dela nunca poderão perceber o quanto lhe fizeram mal ao usar um texto dela fora do contexto. E gostaria, tal como ela, que isso pudesse ser inviável, embora não perceba como. Creio que também me magoaria muito se fizessem algo de semelhante com um texto meu. E gosto que ela se zangue, porque é assim que vejo o mundo perfeito: a ternura e a zanga de existir.

Mas também gostei muito do teu texto Joaquim, e da força que dás à Isabela, que ao contrário de ti não conheço nem há muito, nem há pouco tempo...eu só a leio.

~CC~

Unknown disse...

Como já me manifestei, a liberdade de decisão cabe a cada um.
Como referi, quanto ao que se escreve ir parar a mãos alheias e porcas, neste mundo virtual, estamos todos sujeitos a isso.

Mas poderei ver este facto noutra perspectiva. Texto foi parar onde não devia? Porreiro Quem passar por lá irá quererá saber o seu autor (excatamente, como o dito cujo fez. Já me esqueci do nome) e assim passará a fazer publicidade ao meu e ao que escrevo.
Foi um pouco o que disse à Isabela. Fez propaganda a um ilustre desconhecido. Tão ilustre, tão desconhecido que, como já disse, já nem sei lá ir.

Porque uma das minhas características (defeito ou não conforme a visão) é a teimosia, eu não tomaria a atitude da Isabela. Fechar a porta. Eu continuaria com ela escancarada, e na beleza e acuidade da sua escrita daria era cabo deles construindo o Mundo Perfeito

sem-se-ver disse...

jpn,
desc a intromissão, mas é para subscrever em absoluto, no conteúdo e nos termos, o que a lucubrina disse.

e com isto, queridissima isabela, sabes que usurpo palavras alheias para o que eu mesma, tosca e telegraficamente embora, te quis transmitir.

respeito totalmente, mas não o teria feito.

um beijo. continuarei sempre a ler-te. porque sei que te é impossível deixares de o fazer.

(e sim, como cronista tenho a certeza que és do caraças!!)