terça-feira, junho 16, 2009

Exercício automático Nº 1

Se fechar os olhos o que me ocorre? Acorre? As primeiras imagens: o moinho velho entre a Paz e a A-da-Pera, onde entrávamos dentro das páginas da fantástica Enid Blyton. Depois, por ser ali ao lado, as tardes de sábado, depois das aulas, em que vinhamos no carro do pai do Manecas, e ficávamos a ver o Daniel Boone. Só depois me fazia à estrada no caminho que sobejava para minha casa. Ainda mais uma imagem rural: Os ninhos de andorinha. No outro dia reparei que elas já os constroiem com plástico e outras substâncias tóxicas. Se isto continua assim os nossos animais também vão um dia precisar de um tratado de kyoto. Na minha casa, por baixo do alpendre, havia ninhos de andorinha. Lembro-me de como este pássaro desapareceu da minha vida quando cheguei à cidade. Mais imagens rurais: pedalar de bicicleta até ser noite, até ser dia, até se acabarem as forças e depois atirar-me para cima da erva, do tojo, da palha, derreter o meu cansaço assim. Outra imagem: a grande figueira que havia do outro lado do muro do seminário, em frente à minha casa na rua domingos machado. O visco gorduroso que nos levaria ao raspanete materno, era certo e sabido, mas também ás delícias da Alice, da Manuela, a quem entregávamos os troféus suculentos trazidos da nossa aventura no outro lado do muro. As imagens rurais nunca mais se acabam dentro de mim. Não sei porquê, à medida que cresço (eu ainda disse crescer, não envelhecer) a memória da infância torna-se mais forte e a da juventude mais diluída. Mas lembro-me também claro. Muitas dessas memórias estão espalhadas por aqui, no Olival. Lembro-me das pessoas, quer dizer, não consegui esquecê-las ainda. O meu avô Figueira. Os seus cabelos brancos lavados com vinagre e sabão azul e branco, as suas camisas interiores de alças, a sua ginástica matinal, todos os dias, todos os dias não começavam sem o avô Figueira fazer a sua ginástica básica, tocar nos dedos dos pés com a mão contrária, esticar os braços ao céu, em frente, treinar as mãos com uma bola esponjosa, para além dos seus regorgeios com água e outras substâncias naturais cujo rasto perdi entretanto. A minha avó Aurora e a minha avó Joana Rosa. Olho-as às duas, em simultâneo, interiormente neste pasmo imagético que me tolhe. Elas são o meu pedaço de árvore. Uma casmurra, teimosa, tanto mais surda quanto teimosa, tanto mais teimosa quanto surda, as duas infinitivamente bondosas e avós, é assim que as vejo, ao tenpo que passámos juntos. Sou organizado nesta torrente de imagens. Só depois me acorre o meu pai, o meu pai Domingos. Por um lado há também a sensação de que estes nomes tenderão a desaparecer do mapa onomástico. As Auroras, os Domingos, as Joanas Rosas, assim como os Jerónimos e os Onésimos, de dois dos meus tios maternos, têm os dias contados. Não voltam mais. O exercício automático, tal como o aprendi da escola surrealista que tanto me fascinou aos meus vinte e poucos anos, suspende-se aqui e acoli, obrigado pela força de algumas imagens. Volto aos lugares. A Comuna, o espaço de dentro, aquela sala vermelha onde nos desfeitiçámos, o jardim, o espaço em volta, onde brincávamos, falávamos, crescíamos. Lembro-me dela, do Quim Preto, da Cecília, dele, do Areski, dos nossos sábados à tarde depois das aulas do João, ele era o mestre. Lembro-me da sala de teatro de O Bando onde me estreei profissionalmente, com o Teatro O Bobo de Horácio Manuel. Profissionalmente? Este exercício passa a ser uma tempestade: os anos em que fui actor, de 83 a 90, foram tempos onde o que aprendi não é convertível à racionalidade lógica e discursiva. É curioso, tornam-se as imagens tempestade que me acalmam. O exercício de actor é um lugar tremendo de generosidade. Para conseguir ser feliz faço muitas vezes esta dedução que não sei se é truque: imagino que estou sempre no melhor lugar e no melhor tempo do mundo. Também em relação ao teatro. Não me imagino a ser actor hoje. Os tempos até estão melhor, há um maior ciclo produtivo, há menos dogmas, e as mentiras que elas instalam, as pessoas e os actores e actrizes que nelas habitam são mais livres, mas no entanto é mais dificil encontrar as margens do rio. Por vezes encontramo-las e ficamos seduzidos pela sua autenticidade, pela forma como a ideologia, melhor, a sua ausência, não lhe atrapalhou em nada o caminho e as descobertas, mas insisto nesta ideia, é mais dificil encontrar as margens do rio. Por vezes imagino-me a ler poesia, a andar por aí a ler poesia, feito dádiva, no outro dia até me imaginei a fazer stand-up, não digo que não voltarei a representar, sei, provavelmente nunca mais serei actor. Não apenas pelas capacidades que se perdem, pela possibilidade de exposição - e exposição para uma pessoa que foi actor nos anos 80 como eu significa também, entrega, dádiva, partilha - que entretanto a vida nos foi dando. Aprecio a exposição tranquila e serena da relação pedagógica por exemplo. Ou a da escrita cénica. Muitas vezes acusam-me de não saber partilhar, é verdade, sou incrivelmente enfiado comigo no face to face, vivo este paradoxo, há na minha pele, na minha molécula atómica, no meu adn, uma memória inesquecível da grande dádiva que é a partilha pública.

1 comentário:

CCF disse...

Não era uma casa, mas um casarão...já ninguém lhe chamaria hoje assim, especialmente se fosse cor de rosa. Aprendi cedo demais tudo o que me foi essencial, ou seja, o que aprendi depois do casarão, foi incrivelmente menor comparado com o que aprendi lá dentro. Ou então, são os olhos de olhar o passado que me parecem sempre maiores do que os de olhar o futuro. Nisso, talvez seja como tu.
Abraço
~CC~