terça-feira, junho 16, 2009

Rua dos cães pequenos

Não falo destas coisas com desafecto. A ligação que existe entre as pessoas e os canídeos diz-me muito. Eu tinha seis anos quando uma cigana passou pela nossa casa na rua Domingos Machado em Mafra e nos deixou ficar com um pequeno bebé a quem era preciso dar biberon. Lembro-me, era quase sempre eu que cuidava dele. E depois, pela vida fora, sempre cresci a ouvir o latido do Toy no quintal da nossa casa na A-da-Pera. Quando vim para Lisboa habituei-me, com os meus irmãos, a aceitar que não podíamos ter um cão, seria uma violência para ele dizia a minha mãe, e assim foi até que um dia o meu irmão mais velho trouxe um pequeno cão preto que quase se podia transportar no bolso. Ficou por pouco tempo, porque quando as suas patas eram um pouco maiores do que a sua cabeça teve de sair. Regras são regras, disse a minha mãe, a contragosto, ela também já se afeiçoara ao Hugo, era assim que se chamava o nosso cão. A primeira vez que tive uma casa com o meu nome no registo de propriedade, calhou que um dia, ao passear em Tróia, encontrássemos um pequeno cão preto, que estava perdido. Que deixou assim de estar perdido. Assim também eu me encontrei muitas e muitas vezes brincando ao esconde-esconde com o Chico, foi assim que o baptizei, em memória do meu tio e avô maternos. O Chico passou a ser uma extensão minha. Com ele descobri que sou muito pior pessoa do que gostaria. Há qualquer coisa em mim de sádico, de criança malvada. Não consigo evitar nem constranger-me por isso. Mesmo agora que já não tenho desculpa para manter os traços de criança, ainda há poucos meses me surpreendi muitas vezes a fingir para mim mesmo que não tinha visto os gatos para lhes dar umas mangueiradas valentes de água. A maior parte das pessoas que aqui vêm, que não me conhecem senão apenas por me imaginarem naquilo que escrevo, apanhariam um choque se me vissem, com a lingua de fora, a dar uma mangueirada nos gatos. Sou tão cínico que até sou capaz de fazer uma careta de espanto tentando fingir para mim mesmo que não sabia que ali estam, os pobres dos bichanos. Com o Chico também era assim. Eu escondia-me dele e gostava de o ver sofrer, à minha procura. A certa altura, quando lhe atirava um pau para ele correr atrás dele, ele, não conseguindo fugir ao seu instinto canino, desatava a correr mas, ia a meio do caminho, lembrava-se do traste que tinha como dono, e voltava apressadamente para trás, ganindo como um coitado. O que eu me ria. Quando por fim me descobria vinha a correr para mim e lambia-me de alto abaixo. Não sei como dizer isto: eu era também profundamente sincero no afecto que tinha por aquele cão. Ele era um amigo. Quando um dia me separei foi quase tão violento perceber que o meu projecto de vida com a outra pessoa tinha acabado como me dar conta de que tería de me desfazer do Chico. Dizia-me alguém anteontem, os cães, ao contrário dos gatos, são uma invenção do ser humano. Temos o cão pastor, polícia, de guarda, guia, de ataque, de guerra, espiões, farejadores, temos todos os cães que a nossa imaginação pode conceber. E os cães ajudam-nos a combater a solidão. As minhas brincadeiras com o Chico proporcionaram-me largas horas de conversas com todos os meus vizinhos da praceta josé correia serra, no Laranjeiro. lembro-me que há uns anos Carlos Jorge Pessoa escreveu (e encenou) para o Teatro da Garagem uma peça chamada "Os Donos dos Cães" em que explorava, para além desta relação intima que se estabelece entre o humano e o seu canídeo, a sociabilização que o acto de os passear, naturalmente provoca. Foi aliás por aí que me surgiu este post. Ao reparar que todos os cães da nossa rua, e são vários, são pequenos, muito pequenos. E não tem a ver com o género dos seus proprietários. Há-os altos, fortes, há as mulheres, costumam cruzar-se nos degraus do prédio aqui em baixo, enquanto outros andam de baixo para cima com aqueles pequenos exemplares presos a uma trela. Há este facto incontornável de que os canídeos pequenos têm uma voz fina, aguda, irritante. Foi aliás por causa disso que me dei conta de que a nossa rua, que é uma rua grande, muito comprida, passará a chamar-se, para desassossego dos que nela habitam, a rua dos cães pequenos.

1 comentário:

Sílvia disse...

Esse tipo de maldade para com os animais, esse "gostar de ver sofrer", está, na verdade, a projectar sentimentos de carência, frustração e sofrimento. Se te fizeram sofrer, se te dominaram, se te excluíram, se para ti a conquista do afecto e da aceitação foi um caminho árduo, vais fazer projectar essa dor, seja em animais, seja em pessoas do teu círculo íntimo. É uma espécie de "vingança" insconsciente. Dizem-no algumas nulidades (como eu) e algumas sumidades em psicologia, como por exemplo em "O Síndrome de Peter Pan".
Devo louvar-te, porque acho muito positiva a forma como revelas essa fragilidade, como assumes essas tuas "maldades".