Morrem em mim todas as imagens quando de repente me dou conta da viagem que há entre aquele desabafo com que acolheu o meu pedido para que fosse pôr a mesa e desligar a televisão, e a minha própria adolescência, os meus pais. Morrem e o que fica é apenas um continuum que me faz ficar a pensar. Eu sei onde estava há trinta anos. Cinco minutos depois quando abro a porta da cozinha para lhe lançar um berro e dizer-lhe que ninguém é seu criado, a luz branca da televisão já não atravessa a sala e o pano está sobre a mesa. Encontrou uma aliada e como adora fazer coisas com ela até se esqueceu do desabafo rebelde. Eu volto para a cozinha para acabar o jantar e já vou a sorrir. Há trinta anos estava no meu quarto, a querer escrever o meu romance e ele, esse mundo de fantasia couraçado ao real era invadido por um
quim, vai buscar ...
ou então não havia romance, havia apenas um cigarro, eu a querer fumá-lo, e aquela possibilidade de me interromperem, de serem donos de mim era tão forte que eu já me vi, na pré-história dos meus argumentos com o Pedro a tentação de dizer o é assim porque eu mando, porque sou eu que pago as contas, porque sou mais velho, e eu sem me ter dado conta naquela altura, já passaram uns anos, que queria dizer apenas, é assim porque eu amochei e agora amochas tu, é assim porque eu também me sacrifico por ti e tu tens de, até aos dezoito anos, de amochar ao que eu digo, ao que eu penso, ao que eu quero, porque eu sou teu dono, eu mando em ti, e se me chateias muito devolvo-te à rua, aos ciganos que andam aí a pedir, ao homem do saco. foi preciso um
O pai não manda em mim,
para eu perceber que aquele recalcitrar era também uma ponte por onde eu podia passar para tentarmos en conjunto reaprender o que é que é o poder, o que é que é mandar, o que é que é obedecer, o que é que é crescermos os dois para a liberdade, sim, não me caiem os tomates no chão se eu tiver que reaprender isto tudo com um gaiato de oito anos, o tempo não quer dizer nada, o que quer dizer tudo é o amor e eu amo-o, amo-o muito, todas as noites que ele está cá não há nenhuma noite em que não lhe diga, esta casa ainda fica com mais luz quando estás cá, amo-te muito, eu sei que no outro dia li, ouvi, um pediatra de voz doce e melosa dizer que os pais não são amigos, são pais, e eu a mandá-lo foder cá por dentro, a pensar, vou ser teu amigo sempre, não preciso de ir para as tuas festas, brincar com os teus amigos para ser teu amigo, só preciso que saibas que eu não sei, não vou deixar de não saber só porque tenho de te dar a semanada, comprar a tua roupa, ajudar a pagar as tuas despesas, isso não atrapalha a minha amizade, agora não contes comigo para te enfiar dentro da tua pequena cabeça de marfim uma data de porras que na minha humilde opinião não te servem para nada e qualquer polícia sinaleiro te pode transmitir com muito mais convicção do que eu,
é por isso que eu detesto pediatras de voz doce e melosa, não porque desconfie deles, da sua voz, quem sou eu, apenas porque me dão cabo do zen, começo logo a praguejar, a esquecer-me de onde ía, neste prazer que eu nunca tive com o meu pai ou com a minha mãe, o de lhes dizer como tu me dizes,
o pai vai ser sempre o meu melhor amigo,
porque de facto a minha mãe, o meu pai, o meu avô, os meus tios, as minhas professoras primárias, até a dona yolanda ou a dona maria amália eram as melhores pessoas do mundo, mas por causa do mundo onde tinham sido criados não tiverem esta oportunidade que eu tenho de pegar na mão de um puto de oito anos e ser eu outra vez de novo, psicodrama em movimento,
e perceber a raíz do mal,
este mal que me carrega, esta dor de pensar que há qualquer coisa que me impede de ser eu mesmo e não perceber que isso não está fora de mim, nos gritos de uma representação da autoridade, o que me impedirá de ser aquela gente que as minhas moléculas mais desprevenidas, mais desacreditadas, ainda querem ser, sou eu, a minha circunstância, mas eu, eu mesmo.
E eu que sou ainda novo mas já não tenho o tempo suficiente para recriar dentro de mim a exaltação da paz, da bonomia, da serenidade, para me libertar do ódio que fui acumulando, como se fosse um pús que febra dentro de mim, tenho ainda uma chance, a de o tentar ajudar a crescer para a liberdade como um homem livre.
E se um dia eu morrer, porque como dizia o agostinho da silva quem é que em vivo sabe se morre?, ele, nos seus passos, há-de ter um pouco desta minha birra, desta minha teimosia de me estar a borrifar para os deves ser assim, para a mimetização e a repetição automática dos padrões de poder que temos dentro de nós,
eu não me importo que se um dia ele perder o norte possam dizer que foi por culpa do pai que não lhe transmitiu aquilo que não podia porque ele próprio não sabia. A verdade é essa. Não sei nada sobre o poder, sobre a autoridade, sobre como a devo exercer, em que alturas, com que modos, com que modos sei - amáveis, amáveis, a amabilidade, amo desvairadamente, escancaradamente, infielmente, intangivelmente, impossivelmente, a amabilidade dos nossos dias, das nossas vidas, das nossas palavras -
o resto não. O resto, se ele é uma pantalha onde eu projecto os meus piores filmes, não sei.
4 comentários:
Gostava de trocar umas ideias sobre o assunto :))). Cá em casa passa o mesmo filme várias vezes por semana. Beijitos para todos/a
Eh pá! fiquei com a lagrima ao canto olho. É uma verdadeira ode ao amor paternal. Poça!
"já vou"
esta é uma expressão típica da minha infância e adolescência, quando 'o meu mundo' era interrompido pelos 'grandes' (sobretudo 'pela grande').
"já vou"... "já vou" .. era só mais um bocadinho, às vezes um bom bocado, dependendo do tom do grito, ou se era pelo meu diminutivo ou pelo nome...
Mas todos estes anos passados, há um sorriso de memória, não sei se pela tentativas da manutenção desse mundo, ou pela resistência ao chamamento dos 'grandes'...
É, foi, uma aprendizagem, tentar conciliar o nosso mundo, com o mundo dos outros... e assim continuamos...
nem mais, também a mim o já vou é uma marca a que se seguia o inevitável "não é já vou é vou já" do meu pai ou da minha mãe.
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