Quando percorri os jornais, a blogosfera, à procura das análises sobre a entrevista a José Sócrates aquilo que encontrei pareceu-me mais um esforço de fazer um escalpe ao primeiro-ministro. É legítimo, os escalpes mediáticos são muito catárticos e não creio que os próprios marketeers do primeiro ministro não tentem explorar essa condição, mas isso dificultou a minha tarefa quando me lancei ao rescaldo da entrevista. E eu queria realmente saber. Até porque perdi partes substanciais da entrevista, nomeadamente, para mim, claro, quando ele terá assumido como erro a pouca importância dada à cultura. Ou quando ele falou sobre a obra feita no controlo das contas públicas (já que, segundo o que ouvi a uma comentadora da SIC ele teria sido grosseiramente falso face ao relatório mais recente do Banco de Portugal).
Assisti meio divertido ao rescaldo dos comentários televisivos, feito tanto por jornalistas como por políticos.
Para mim que estou dentro do fora do circo, há uma coisa que me causou alguma perplexidade: a coincidência tanto de pontos de vista como de abordagens entre os comentadores jornalistas e os políticos (excepto o Ricardo Costa que embora seja cada vez mais irritante (e irritável) no modo como açambarca a palavra nos debates tem o mérito de se preparar muito bem para estas participações) o que diminui a mais valia analítica. Porque é claro que é natural que os partidos da oposição tentem desvalorizar a nova atitude do primeiro ministro, dizendo que ela é plástica, falsa, que lhe fica mal. Compreende-se a estratégia: se esta nova atitude lhe ficar bem será terrível para a oposição, já que perde muito do seu argumentário contra o primeiro ministro. O que eu já não acho muito interessante é ver um politólogo a caracterizar a atitude do primeiro ministro como um vaivém entre o delegado de propaganda médica e o explicador de província. É uma tentativa de assassinato de carácter que é admissível num combate político mais aceso - porque não há nenhum ataque que não dê ricochete e, neste caso da politica essa possibilidade de alguém ser ferido pela arma que utiliza como que legitima o seu uso - mas surge totalmente fora de uma análise mais fria do facto político.
A primeira coisa que seria interessante pensarmos é nesta questão da autenticidade, da verdade na comunicação política onde os protagonistas assumem um determinado papel comunicacional. Para o fazerem devem moldar-se aos objectivos que têm para cumprir. São actores, representam algo para o exterior. Esse papel, tal como no teatro, é uma parte composto por aquilo que os actores políticos, os seus encenadores e directores e pessoal de apoio, prepararam para fazer passar uma determinada mensagem, outra parte constituída pelo confronto com o meio e com o receptor da mensagem. Quanto mais alto o nível de poder que representam mais vulneráveis são ao modo como os seus comportamentos são vistos (1).
No caso de José Sócrates, o seu comportamento politico tem vindo a ser caracterizado como autista, arrogante, que pensa que tem sempre razão. Esta imagem foi construida em diferentes momentos e nalguns casos tem a ver com o seu comportamento: lembro-me de uma certa irritabilidade que ele demonstrou enquanto era ministro, ou em entrevistas que não lhe correm tão bem quanto queria. Ou também pela forma aguerrida como assume parlamentarmente o combate político. Mas qualquer pessoa percebe que grande parte da imagem de arrogância advém de um facto político (2) do qual ele não tem responsabilidade nenhuma: o de com ele o Partido Socialista ter tido a primeira maioria absoluta à esquerda no pós 25 de Abril e de ter por isso condições impares para desenhar politicas que podiam ser impostas sem condicionalismos politicos formais internos para além daqueles que resultam do natural exercicio do poder constitucional e da presidência da república. O que também valorizou a rua, a pressão corporativa, sindical e dos meios de comunicação social. É um fenómeno que acontece muito nas maiorias absolutas. Mostrando à teoria política que afinal as eleições, com ou sem maioria absoluta, não açambarcam todo o poder político disponível. Se a oposição parlamentar tem numa maioria absoluta um papel mais ou menos decorativo e regimental, pelo contrário a rua, as bancas de jornais, as organizações profissionais e os lobies económicos, financeiros, sociais. têm um grande ascendente político.
Também, porque para uma segunda geração de políticos que dominam ou dominaram vários espectros politicos, onde se integram Portas, Durão Barroso, Santana Lopes, Manuela Ferreira Leite, Luis Filipe Menezes, Sócrates parece um pouco o nosso Special One. Tem boa figura mediática, faz alarde da sua exuberância física, é inteligente, intuitivo, bem preparado, é moderno, assume questões fracturantes com uma desenvoltura que aquele PS que queria ser poder muitas vezes não tinha, pertence a uma nova geração de políticos criados já na revolução e que assumem muito profissionalmente a política. Por outro lado, ao contrário do que se deveria esperar desta imagem arrogante tem cultivado alguns sinais de cultura democrática que são raros: presença na assembleia da república, ida à televisão para se se explicar em aspectos tão controversos como o Freeport ou o caso da sua licenciatura. É dificil imaginarmos qualquer um dos líderes políticos que actualmente ocupam o espectro parlamentar a resistirem pessoal e politicamente a um ataque e a uma exposição mediática tão forte, tão intensa e tão prolongada como aquele a que tem sido sujeito Sócrates.
Sem dúvida que as políticas do Partido Socialista merecem ser combatidas pela oposição e há muitos aspectos em que esse combate, para ganho comunitário, tem sido feito com grande sentido de justiça e oportunidade por parte desta. Também é do mais elementar bom senso reconhecer que o Governo tem tido uma actuação muito vulnerável em áreas muito importantes como a Saúde, a Educação, Cultura, Economia e Finanças, não devendo por isso estranhar-se a ebulição social e política que tem provocado. O que parece é que por mais defeitos que atribuamos às politicas desenvolvidas por Sócrates parece ainda ser do mais vulgar bom senso reconhecer que na oposição os personagens políticos estão a anos-luz do desempenho profissional que se pede politicamente a quem quer assumir uma liderança politica do país. Ou seja, os defeitos de Sócrates, penalizando-o, não conseguem iluminar as qualidades políticas e pessoais dos seus adversários.
E essa é que é a grande verdade que custa a todos eles, animais politicos (que sabem que já tiveram de mudar de comportamento politico muitas vezes e que por isso pressentem a hiprocrisia da acusação sobre a mudança de tom do primeiro-ministro):é que têm medo de que José Sócrates, agora que se calcula que já não terá maioria absoluta, pareça menos arrogante. O mais engraçado: estará por provar que esta mudança de tom esteja mais na representação do que na sua recepção. Somos nós que vemos José Sócrates menos arrogante porque já não o vemos como o primeiro ministro que tem uma maioria absoluta mas como o homem que se ganhar terá de governar com uma maioria de acordos parlamentares.
No entanto, surpreendentemente, tudo isto que se disse sobre a nova atitude de Sócrates poderá ter grande evidência e será assim aliás uma grande injustiça para uma das melhores pivots e entrevistadoras da tv portuguesa, Ana Lourenço, a quem - para além de um dia muito quente e longo com uma presença na Assembleia por causa de uma moção de censura - se deve grande parte desta "nova imagem" de Sócrates.
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(1)Temos erradamente a impressão de que estes individuos são seres bafejados pela fortuna, que são uns privilegiados mas se os olharmos pelos olhos de um cidadão comum que gosta da simplicidade, do usufruto desse grande poder que é respirar, os mais altos representantes da Nação (presidente, primeiro ministro, ministros, secretários de estado e chefes de gabinete) têm uma vida de cão. Têm uma vida de cães actores.
(2) Para além de factos absolutamente lamentáveis como os da Directora da DREN ou o caso dos cartazes do Centro de Saúde, mas com os quais é dificil conotar José Sócrates.
2 comentários:
Interessante como sempre esta sua análise, caro JPN. O Teatro e a Política são parecidos mas distingue-os uma importante diferença. Ao actor peço boa interpretação do seu papel mas nunca lhe exijo que transforme a fantasia que representa na vida que viverei assim que ele saia de cena.
Até me poderá influenciar, aceito. O que certamente não fará é prejudicar a minha vida e a dos meus. Aí reside a diferença entre um bom actor que não é um político e um mau político que pode ser um excelente actor.
Meu caro, não sei se será tanto assim. Quer dizer, contigo será, não duvido, mas creio que te colocaste como exemplo do que acontece com a generalidade das pessoas, quando talvez não o sejas. Para a generalidade das pessoas os personagens nunca saiem de cena (basta veres a forma como elas recordam e se lembram dos actores/actrizes, associando-os a um determinado papel mais forte dramaticamente). Há alguns até (ver a Rosa Púrpura do Cairo) que levam tão a sério esse dispositivo ficcional que pretendem trocar a sua vida real por uma fição que constroiem. Isto para dizer que sabemos muito pouco destes fenómenos e grande parte do nosso nãos saber advém do facto de só termos para o interpretar material de natureza dedutiva e racional.
Mas é muito interessante, porque verdadeira, a tua imagem final: um mau politico pode ser um excelente actor. E o inverso claro. O casting decisivo é lá para Outubro. :)
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