O meu espanto não tem metafísica nenhuma. Há pouco, ao olhar pelo autocarro, chovia, o que dá sempre um certo relance de utopia desesperada ao pensamento, a chuva, olhei-me através dos outros que andavam a fugir das poças de água, dos pingos, e achei que as imagens que me explicam superiormente isto - eu adoro esta frase, apanhei-a de um poeta algures e agora, há anos, faço-a, despudoradamente, minha - estão tão cansadas, tão gastas, tão incapazes de explicar seja lá o que for.
Deu-me, pela vidraça do autocarro, para multiplicar esta sensação por todas aquelas criaturas esgueirando-se da água, ainda não o dilúvio, que corre dos céus, e assim, o autocarro roncava no pára-arranca do trânsito congestionado ali ao Cais do Sodré, ao pensar que mais uma vez cada um de nós, no próximo domingo, vamos escolher o nosso destino - é tão violenta, tão terrorista esta afirmação de salão, pelo menos se vista pelo lado da rua, chove, se nós escolhessemos, se aquilo que nós escolhessemos fosse escolhido, merdas, a nossa cidade, uma fábrica de cidadãos! - e assim, a democracia, ciclicamente, como as chuvas de Junho, depende dos anos, não deveríamos exigir mais democracia, mais justiça social, mais igualdade, isso são upgrades nas diferentes aplicações do dispositivo humanista, deveríamos exigir, deveríamos poder exigir, uma nova pele, e, principalmente, uma nova memória. O que nos trama não é aquilo que hoje vivemos. O que nos trama são as imagens interiores que temos dentro de nós que não nos permitem saudar, com ingénua exuberância, este fantástico mundo onde, a rebentar de contentamento, a nossa liberdade mais preciosa é podermos escolher o ferro que nos rebenta com a jugular.
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