sexta-feira, dezembro 04, 2009

Amor e Violência

Hoje vinha com esta predestinação: escrever sobre o amor na sua forma tentada. Parece um pleonasmo, o amor será, talvez, em si mesmo, uma tentação. Há quem diga, uma provação. Depois encontrei este excerto de Pavese, e novamente parei diante desta frase à procura de salvo-conduto para depositar nela o testemunho do fogaréu interior. Por vezes a alma surge-nos assim, como se revolta. Tudo o que se viveu, o que se aprendeu, o que se pensava que se sabia, parece não significar nada. Nada diz então. Nem o frenesim das ruas, ou o colorido dos alteares das vozes dos vizinhos, o movimento das pessoas, os seus gestos, as suas faces translúcidas, os seus risos pranteados, o céu pardo. O próprio rio se nega ao proferir, a alguma sorte de mnemónica que nos pudesse sussurar, é por ali! É preciso por vezes deixarmo-nos ir, entregarmo-nos ao silêncio do corpo, de um pensamento que subrepticiamente se escapa por entre as entrelinhas. Tudo é nada e nada é tão tudo, que até estremece. O amor e a violência, o amor e o medo, o medo de nós mesmos, o medo de existirmos. E não é o amor, ele é uma ficção universal, a maior ficção universal que, desde o fundo dos tempos, consumiu todos, realistas, utópicos, pessimistas, positivistas, míticos: é a relação. É o estarmos em relação. Não há receituários, não há posologias recomendadas, tudo és tu e eu, eu e tu, sejas tu nós, tu, ou apenas um espectro existencial que preencho com o meu vazio. Já soube mais coisas sobre tudo, inclusivé, sobre o amor, a sua inexistência, a sua improbalidade, a sua ternura. Perdi todo o meu saber, não o sei dizer. E se o escrevo, é apenas porque com o passar dos anos desenvolvi com alguma perícia esta habilidade de fazer sair a minha história pela ponta dos meus dedos. Tento saber um pouco mais sobre o que é a violência. Na minha idade a violência, a violência interior, não é um momento aconselhável a pessoas demasiado sensíveis. E a relação - já não disse o amor - que parece muitas vezes ser a supressão da violência, é, demasiadas vezes, o palco mundial da violência. Não é por acaso que a violência doméstica acode a tantos lares e com igual generosidade tanto ao humilde como ao letrado. E não é só por causa do tempo que passamos isolados - isolados, já repararam que as nossas casas, a forma como as construimos, são uma espécie de ilha solitária onde estamos recolhidos do mundo? - é também porque a relação é o lugar onde a certa altura nos confiamos ao outro na nossa interioridade. Nos nossos segredos mais profundos. Ou até nos mais pequenos. No outro dia, para saber se a amava, se verdadeiramente a amava, coloquei a prótese debaixo da cama. Estava escuro, mas o efeito vocal na minha boca desdentada denunciou-me. E eu estive ali um mundinho inteiro, uma vida quase, a tentar perceber se tinha caído por um precípicio, o precípicio que é também o meu medo de existir em relação. Não caí, a sua mão firme segurou-me, claro. E nem tudo são segredos de mentirinha, como este falso pudor, que me vem de ter começado a usar placa muito cedo, desde os dezanove anos. Há segredos, como a nossa violência, que são tão bem guardados que até de nós os escondemos. Uma espécie de vulcão que irrompe, e que nos deixa desprevenidos. Torna-nos irreconhecíveis. Por vezes a violência é tanta que não permite que nos reelaboremos. Temos de sair das nossas relações. Tantas e tantas vezes que o frágil fio de linha que nos prende na relação se quebra porque a nossa violência, como se fosse um espelho, nos trouxe uma imagem de nós próprios que não conseguimos nem sequer, na nossa solidão, aceitar, quanto mais, em relação, partilhar. E não há medida para isso, cada um de nós, é um caso, e provavelmente fará diferença a forma como nos fomos, ao longo da vida, relacionando e convivendo com a nossa violência. Há milhares de anos, ou pelo menos no milénio anterior, escrevi em Paz Violenta, texto anexo à declaração de objecção de consciência: um adepto da não-violência não é alguém que não é violento, é alguém que, assumindo-a, a tenta trabalhar de uma forma positiva. Também a relação não-violenta, carrega às costas, como um fardo muitas vezes, a sua própria violência, desassociando-a dos estereótipos que temos sobre a violência: destruição, anulação e supressão do outro.

2 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Querido Joaquim, que bem agarraste no mote do Pavese :) Havemos de regressar a ele à volta de um café. Abraço e bom fim de semana

carmen disse...

PARABÉNS PELO BLOG!
GOSTEI MUITO DO QUE ESCREVES.
VOLTO LOGO.
ABÇS