No i, Bernard Henri Levy, escreve contra a burka. A única vez que escrevi aqui sobre isso foi para dizer que não sei o que pensar sobre esse assunto. Tenho alguma dificuldade em localizar-me porque reconheço argumentos favoráveis em ambos os lados. No entanto o argumentário do filósofo francês não me convence inteiramente. E até me irrita, quando por exemplo ele diz que o discurso da servidão voluntária nunca colheu como argumento (para mim é uma inovadora abordagem das relações de poder). Irritações à parte, os argumentos de Levy:
1. "A burca não é um traje. É um ultraje. É uma mensagem que transmite claramente subjugação, subserviência e, em última instância, a aniquilação das mulheres." E acrescenta:"
Se a burca é realmente, como afirmo, uma afronta às mulheres e à sua luta secular pela igualdade de direitos, também é um insulto às mulheres que, no momento em que escrevo estas palavras, se estão a manifestar no Irão, de cara destapada, contra um regime de assassinos que reclamam o xador como um dos seus símbolos. "
A ideia de que a burka é um ultraje é um slogan engenhoso e poderoso para a comunicação de massas, por exemplo, para o twiter. No entanto, ao pensarmos melhor porque é que ele é um ultraje, percebemos que o é porque é entendida não apenas como um vestuário, mas pela mensagem que transmite. Ora - faz parte do mais elementar da teoria da comunicação - se ela tem um valor como mensagem, esse valor é diferente conforme os contextos. Não faz sentido que tenha o mesmo valor num regime de natureza totalitária que obriga ao uso de burka do que num regime de natureza democrática que não só não obriga ao seu uso, como teria como mais cómodo que não o fizesse. E nós sabemos disso: quem quer proibir o uso da burka em Paris não quer efectivamente proibir o uso da burka em Paris, quer é, através dessa proibição em Paris, associar-se à luta pela libertação da mulher islâmica da obrigação de o usar nos diferentes lugares deste planeta que lhe exigem. É como se, com grande ingenuidade politica, quem proibisse as mulheres árabes de envergarem a Burka na cidade Luz, sentisse que estava a proibir os regimes islâmicos de exigirem às suas mulheres o uso de burka.
2. "Esse símbolo iria dividir a humanidade entre os que celebram a glória do corpo e do rosto e aqueles para quem o corpo e a face são um ultraje, um escândalo, uma coisa suja a esconder ou neutralizar."
Trata-se de um argumento moralista, e, como quase todo o ímpeto moralizador, pouco ético: se fosse expandido para o resto da sociedade, a maior parte de nós andaria nú, como reza qualquer catálogo - ou será decálogo - nudista. E não se trata de humor: é uma constatação face à nossa evolução sobre o interdito, o censurado, o proibido. O Ocidente tem uma forma específica de tratar da invisibilidade do sujeito enquanto sujeito, e de esconder o corpo e o rosto, mas não é por ser ocidental, por a ela estarmos mais familizarizados e já a termos interiorizado, que é mais válida do que qualquer outra, ou, pior do que isso, que a devamos impôr aos outros. Provavelmente o que se passa é que ao nos contemporizarmos com outras formas, talvez percebamos melhor o trabalho realizado pelos nossos próprios dispositivos de censura.
3. Por todos estes motivos, sou a favor de uma lei que declare clara e abertamente que usar uma burca em público é um acto anti-republicano.
Poderíamos dizer, agora sim com algum humor, que a jactância republicana é que é, essa sim, profundamente anti-republicana. E o ser anti-republicano - admitindo que uma coisa criada fora da república possa ser anti-republicana - não quer dizer que seja anti-democrático. Também a monarquia é profundamente anti-republicana e temos confrarias, movimentos, partidos monárquicos e até, pretendentes ao trono.
4. O facto dos argumentos de proibição da burka expostos por Bernard Henri Levy não serem os melhores, não quer dizer que não possa vir a ser legítimo, ao limite, proibir o uso da burka nas nossas sociedades e principalmente, em certos contextos ou em certos locais. A escalada securitária advinda com o 11 de Setembro reposicionou as nossas ideias sobre privacidade e reserva de intimidade e se todos nós aceitamos que os nossos hábitos e as nossas ideias sobre o que é legítimo o Estado saber ou querer saber sobre nós, sobre o que transportamos, tiveram que mudar, também é legítimo estender esse principio a um instrumento de ocultação que pode vir a constituir um perigo público. Aliás, no Iraque, no Afeganistão, a utilização de mulheres-bomba, encobertas com burkas, foi um estratagema utilizado para muitos ataques suicida. Devemos no entanto enquadrar isso no âmbito da perda de liberdade a que os novos contextos de segurança nos contengenciaram, e não de uma desmesurada soberba (anti) democrática.
5. Na mesma ordem de ideias, a vulnerabilidade do argumentário de Bernard Henri Levy, e a possibilidade de isso demonstrar que ele percebe pouco do que se passa quando uma mulher árabe usa a burka em Paris, não quer dizer que, só por nos opormos a esse argumentário, que saibamos melhor o que acontece nessa situação. Por exemplo, e isso já seria inaceitável, que o uso da burka pudesse ser a continuação, em contexto micro-social, as familias, os grupos, da exploração da dignidade da mulher feita nos países islâmicos. É claro também que há muitos tipos de burkas. Antevejo que quando grandes estilistas parisienses adoptarem o modelo e o integrarem nas suas propostas, a experiência de usar burka, possa ser entendida fora dos seus contextos de usura. É apenas um palpite.
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