Tem-me acontecido nos últimos dias com alguma frequência. Leio o Público, começo sempre pelo fim, pela opinião, e depois há um texto que me motiva o responso interior. Lembro-me sempre nestas alturas de uma deliciosa conversa com E. Prado Coelho, em que ele nos dizia que a meio de ler um texto já começava a ferver, a escrever o seu próprio texto. Ando agora aqui também eu, numa agitação interna, a dizer, a contradizer. Hoje foi com o Santana Castilho. Escreveu um texto, "Luís, Leandro, Isabel e José", sobre a morte do professor e do aluno, os dois no mesmo quadrante. Conheço o fenómeno. Não o vivi em inglês, tal como ele agora surge, vivi-o portuguesmente. Tinha 14, 15 anos, foi num verão longínquo, um bando de jovens da minha rua. Chamavam-lhe as mostras. Acontecia sempre quando as anedotas, as histórias se acabavam. Quando os silêncios começavam a ficar cada vez maiores, o tédio sobrevinha, o tédio na juventude é um cancro, um tumor, e lá havia um palerma que se lembrava que ainda não tinham feito aquele ritual quase diário da excursão à minha pila que naquelas ocasiões, talvez com o medo, o pavor ou a vergonha, mais pequena ficava. Entre o dilema de querer pertencer ao grupo e o de ser essa vontade de lhe pertencer que tanto sofrimento me advinha, também cheguei a desejar morrer.
Nunca percebi porque é que isto acontecia e, infelizmente, creio que não haja grande explicação. Ou seja, as explicações habituais parecem-me ideologicamente perversas. Sei que se fosse hoje, eu poderia fazer queixa contra eles e eles seriam até, nas palavras de Santana Castilho, encarados como jovens delinquentes. É uma má explicação. Aliás, o texto de Santana Castilho deveria ser lido como se fosse um hipertexto, ligando-se a dois outros pequenos textos: o de Rui Tavares, sobre a cultura da autoridade, e o destaque dado, no Sobe e Desce, com o destaque ao professor do ano, por, lê-se na pequena nota do barómetro da última página do jornal, ter conseguido taxas de sucesso de 100 por cento a Físico-Química. O que a mim me chamou a atenção é que, nessa pequena notícia, como explicação para ele ser o professor do ano, o Público colocasse como justificação as taxas de sucesso de 100% quando todos nós fomos bombardeados com a pressão ministerial que tem havido nos últimos anos para que as taxas de sucesso escolar rondassem esses mesmos valores. O que seria um pouco incongruente por parte de um jornal que, assumidamente, desenvolve uma atitude tão pro activa no domínio do jornalismo relacionado com a educação. Que o Ministério o fizesse, pareceria natural, ela serve para legitimar as suas politicas, que o jornal o fizesse, assumindo acriticamente a posição ministerial, já me pareceria um pouco estranho. Segui por isso até à página 8, onde se explica quem é e o que faz este professor e, lendo o relato da actividade impressionante, e modelar, deste professor, cedo percebemos que o seu grande mérito não é ter taxas de 100% de sucesso escolar, é ser um daqueles professores que adaptam a lei de Lavoisier à tarefa educativa: " na educação nada se cria, nada se perde, tudo e transforma". Santana Castilho, com propriedade, chama a atenção para a ambiguidade (digo eu, ele refere falta de bom senso) das declarações políticas da ministra e do director regional de Lisboa. Não foram felizes, é um facto. Mas talvez devamos assumir que nestas ocasiões não há ninguém que diga coisas felizes. Dizemos coisas. Como Santana Castilho, que depois de chamar a atenção para a falta de senso destes responsáveis educativos, começa também a correlacionar um conjunto de problemas essenciais para a discussão da tarefa educativa (os problemas nascidos com o encerramento de 4000 pequenas escolas de aldeia, com o aumento do tempo de permanência dos alunos na escola, a avalanche de pedidos de reforma dos professores, a crise de autoridade) que por mais pertinentes que sejam para a tarefa educativa não parecem ser fundamentais para se discutir a sério este fenómeno, o da violência do grupo sobre o individuo, agora chamada de bullyng.
É um dizer coisas. Acontece muitas vezes na vida. Face a situações que escapam à nossa compreensão mais imediata, e tendo de ocupar os oráculos que se nos colocam, seja um microfone apontado a um responsável político pela educação, seja a um articulista que se especializou na discussão dos fenómenos ligados ao mundo escolar, dizemos coisas. Todas essas coisas acabam por ter um lado menos feliz que depois, numa lógica de história interminável, acaba por ser repegada por um outro com necessidade de preencher um determinado espaço de expressão. Como eu acabo de fazer.
A questão que coloco agora é esta: podermos deixar de dizer coisas? Poderemos suspender o dizer e procurar perceber o que se passa? E como o vamos fazer? Escrevo um post em branco com o título, Luís e Leandro, a morte nas águas... e espero que os leitores parem diante dele alguns minutos, tantos os que gastaram a ler estas palavras? E depois, onde nos encontraremos para debater esta nossa incapacidade de percebermos o que se passa? Já vai sendo recorrente este apelo: penso que deveríamos primeiro começar por assumirmos que não sabemos o que dizer sobre estes problemas. Assumir esse não saber é um passo importante para nos darmos conta de que há, em todos nós, uma responsabilização cívica que temos de fazer. E que tira muita da jactância - e porque não dizê-lo, arrogância - implícita aos nossos discursos, ao próprio discurso. Geralmente atribuímos o privilégio da palavra - e a profusão democrática que a palavra tem com fenómenos com os blogues mais acentua essa natureza privilegiada de alguns oráculos - a quem nos pode dizer algo de relevante, algo que sabe, que reúne um conjunto de conhecimentos que devem ser partilhados pela comunidade de leitores.
Talvez neste caso, devêssemos começar pelo contrário: dar como relevante a nossa incapacidade de percebermos, nos nossos esquemas ideológicos já definidos, o que se passa, e criar espaços para a reflexão e discussão deste problema. Contra aquilo que é sempre do bom senso fazer, desdramatizar as questões, eu proporia a sua dramatização. Começam a multiplicar-se entre nós, e sob diversas designações, experiências que de alguma forma seguem, veiculam ou se inscrevem nas práticas de teatro-forum lançadas, em diferentes contextos por Augusto Boal. Fazer uma dramatização para desdramatizar, é a minha proposta. No interior das escolas, nos salões de colectividades, nos prós e contras, vamos fingir que somos uma comunidade inteligentemente robustecida na discussão, na partilha, no assumir esse espaço em branco que não sabemos ainda preencher.
3 comentários:
Hoje em dia há um endeusamento anormal das crianças e dos jovens, que os torna intocáveis. Eu continuo a achar que as crianças são más e os adolescentes perversos. Tratem-nos com rédea curta e disciplina.
Excesso de condescendência, de liberdade e permissividade, numa altura em que eles são ignorantes e destituídos de sentido de responsabilidade, é um erro brutal. Não lhes incute civismo e só lhes dá força para a asneirada!
Cada vez tenho menos certezas, mas deve ser da idade.
Também sofri bullying, que não se chamava nada.
Mas o pior que sofri, foi com adultos, a minha professora na primária, quatro anos seguidos, os pais de uma amiga numa festa de anos, etc.
A crueldade e a maldade é característica dos humanos, diabolizar só as crinças pelo abuso de poder, ou abuso da força, quando há um universo imenso de adultos a fazer o mesmo sem ninguém ligar nenhuma, não tem muito sentido, penso eu.
No entanto tenho a teoria, que estes abusos, só são perpetrados, tanto no universo de adultos, como no universo das crianças, quando há mau carácter e esse infelizmente não se modifica. Limam-se algumas arestas, mas virá ao de cima, mais cedo ou mais tarde. Até nem sou determinista
O mau carácter é transversal a toda a sociedade
Também fui vítima de bullying e pedofilia, mas prefiro não ter uma opinião toldada pela vitimização. Às vezes olhar as coisas com alguma frieza, sem paninhos quentes e com pragmatismo, é mais eficaz.
"Diabolizam-se" crianças, porque delas se fala aqui. Mas da mesma forma se diabolizam os adultos que também já foram crianças, e no futuro se diabolizarão os adultos que as crianças de hoje serão. O carácter que se manifestará, só será mau mais tarde se não for bem orientado mais cedo - quando se é criança, precisamente. Uma boa educação é fundamental, mas quem é que a vai exercer? Quem não a teve, ou a teve de forma deficiente? E o que é um bom educador? E quem pode avaliar a qualidade dos educadores?
Os pais culpam as escolas para se desresponsabilizarem das suas lacunas pessoais; as escolas culpam os pais porque não assumem para si o papel de educadores morais.
E ninguém se responsabiliza a si próprio por opções mal feitas e decisões mal tomadas. E aqui, lamentavelmente, se incluem algumas das próprias vítimas. É cru? É. Mas vê-las como "coitadinhas" também, porque é uma falsa caridade que sustenta o problema e não o resolve.
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