De repente o passeio marítimo levou-nos até ao memorial a todos os que combateram nas nossas antigas colónias. Não foi a nossa deriva colonialista que me agarrou para aquela pedra murmurejada, com nomes que me iam sugerindo interpretações em catadupa. Comecei por contar os mortos. Oito mil, novecentos e quatro. Por vezes enganavamo-nos e eu voltava atrás mesmo que tivesse de recontar várias páginas de mármore. Um morto a mais ou a menos não importavam nada para o post que eu queria escrever (há muito que deixei de olhar para as coisas, agora tenho a nítida sensação de que olho para os posts que há nas coisas) mas pareceu-me que tentar ser exacto com o número de cada um deles era a única coisa que eu hoje poderia fazer de digno por aqueles que morreram. Mesmo sem saber o que é que lhes devo (o que quer dizer que duvido dos discursos oficiais sobre esta mortandade lusa em terras de além-mar). Os nomes estão dispostos por anos mas com acrescentos que se percebe, são recontagens de anteriores listas oficiais. São nomes e patentes, e o que estas duas realidades conseguem, passado tanto tempo, transmitir. Talvez a pedra pudesse ter também o lugar onde cairam. Ou se calhar partiram do princípio de que a morte é um não lugar. O lugar onde nascemos, onde vivemos, fala de nós. O lugar onde morremos, principalmente se morremos numa terra estranha a morrer por ideias que para muitos talvez também soassem de forma estranha, talvez não acrescente nada ao nosso epitáfio. Até sessenta e quatro, ano em que passaram das quatro centenas e meia de mortos, tombaram poucos soldados em relação à sangria que veio a seguir. Sessenta e nove e setenta e três foram os mais sangrentos, com mais de novecentas vidas perdidas. Oito mil, novecentos e quatro é o número oficial dos que estão imortalizados no memorial, ali em Belém. Mas há todos os outros. Os que não morreram do nosso lado. E há também as famílias enlutadas. Todas elas morreram também um pouco. Há uma mortandade que estravaza o rio da forma como falamos oficialmente disto. Uma passagem apressada pelos nomes gravados na pedra, deu-me para perceber que daqueles quase nove mil nomes, não há muitos nomes finos. Encontrei um cabo Roquete, e um cabo Cayate, e fiquei a imaginar o que faziam ali, entre os humildes. Ou quem era o Ten. Jean Filiol Raymond e porque é que em 1957 foi uma das três baixas das nossas forças armadas (pouco tempo depois descubro, no google: Jean Filiol Raymond tinha vinte e nove anos, combatia na Índia e recebeu, a título póstumo, a medalha de prata de valor militar, com palma). São grossos os nomes de grande parte dos que tombaram. A guerra foi particularmente aziaga para o Adelinos, para os Antónios, para os Américos, para os Agostinhos. Nem a morte procurou muito as patentes mais elevadas. Soldados, cabos, furriéis, cairam muitos. Agora só comecei a encontrar patentes mais altas em nomes com ressonâncias estranhas. Provavelmente o capitão Zacarias Zaiegh, o Tenente Cicri Marques Vieira e o Alferes Malam Baldê não terão morrido muito longe de casa. Mas de todos os nomes, o que mais me impressionou foi o daquele homem caído em 1971: não tinha nome próprio, nem nome de família. Era soldado e chamava-se única e somente Vida.
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