Leio a crónica (link indisponível para não assinantes) de Mário Vieira de Carvalho, professor universitário (e ex-Secretário de Estado da Cultura), sobre a "ausência de pensamento estratégico que explica os ziguezagues na Cultura" e que fez com que, no sector das artes do espectáculo, "nada de substancial" tenha mudado " nos últimos vinte anos". Relevante para esta situação o facto do governo se ter comportado esquizofrenicamente já que " primeiro aprovou a legislação (bases legais de uma rede apoiada pelo MC segundo critérios e indicadores objectivamente mensuráveis) e promoveu a sua entrada em vigor; logo a seguir, e antes da sua aplicação, revogou-a". E também, na linha da acusação das artes do espectáculo estarem subordinadas a interesses lobbistas "não temos uma política cultural. Mas temos uma polícia da cultura."
Crítica:
Antes de tudo o mais: depois de Arno Gruen já não consigo ler ingenuamente esta contaminação psicoterapêutica da abordagem política (e na qual já muitas vezes, aqui também, embarquei), na qual a esquizofrenia é, provavelmente, a patologia mais receitada por toda a psiquiatria de sofá. Não deixa no entanto de ser curioso, no contexto deste argumento, verificar que a assinatura deste texto, uma reflexão sobre o exercício do poder político nos últimos vinte anos, na área das artes do espectáculo, fazer referência a um professor universitário quando, ao contrário, a assinatura de outros artigos seus sobre esta questão da "tirania do gosto", já terem referido o ele ter sido "ex-secretário de estado da cultura".
Primeira crítica: "o argumento niilista". O que Mário Vieira de Carvalho (MVC) nos diz é que nada de relevante mudou nas artes do espectáculo de 1990 a 2010. O que abrange o período de 1995 a 1999 onde, assumidamente, se fez uma pequena revolução nesse domínio. Devo dizer que só no pequeno domínio das artes do espectáculo a que me encontro mais ligado, a escrita teatral, a constatação de MVC é uma grande desvalorização de todas as transformações sugeridas. Neste campo o paradigma dominante nos anos noventa foi de corte com toda a experiência anterior (cuja caracterização se encontra feita num capítulo do livro de Eugénia Vasques dedicado a Jorge de Sena) e que a primeira década deste milénio tem prosseguido essa ruptura de uma forma tão consistente que é irreconhecível a paisagem da escrita teatral nos anos sessenta, setenta e oitenta. Estudei o fenómeno nos anos noventa e ao propor-me desenvolver essa pesquisa para a primeira década do milénio, fi-lo na perpepção das importantes mudanças ocorridas. Ora se aponto o exemplo deste campo é porque se trata de um domínio marginal das artes do espectáculo, as mais das vezes distante do epicentro das manifestações de política cultural. Se até nele se verificou um abalo sísmico de forte intensidade, imagine-se nos outros campos. Aliás, a base do argumento sobre a esquizofrenia apresentado por MVC, tem a ver com a incapacidade do governo assumir uma legislação que tinha aprovado e promovido e que estipulava as bases legais de uma rede apoiada pelo MC, o que só por si era já o reconhecimento óbvio dessa rede, que, nomeadamente a dos cine-teatros, foi criada nos anos noventa. E que levou ao aparecimento de uma discussão em torno do trabalho de programação artística e cultural, a uma rede de programadores, a projectos centrados na relação com as autarquias, ao aparecimento de um observatório das artes culturais, etc, etc, etc e ainda, etc. Felizmente, para todos os que trabalham na cultura, os últimos vinte anos destruíram o paradigma niilista que, como um mal de espírito, teimando em fazer tábua rasa dos esforços e mudanças que se vão fazendo no domínio cultural, constroem um caldo ideológico que, aparentemente contra o imobilismo vigente, acaba por institucionalizar a ideia de que nada é possível fazer.
Segunda critica: O argumento do objectivamente mensurável na actividade cultural. MVC opõe-se ao desprezo pelos indicadores culturais, como sintoma de uma "metafísica da qualidade". O contexto em que esta crítica surge é o de uma declaração de Gabriela Canavilhas, o de que "a arte não são só números". Há que valorizar este argumento, mesmo que ele aqui possa também ser entendido como face de uma moeda que, desde que Carrilho chegou ao Palácio da Ajuda, há muito se encontra valorizada na bolsa de valores da discussão socialista para a cultura e que se traduz no empenho com que antigos, actuais e aspirantes a responsáveis políticos se têm entregado a contradizer-se e a atacar-se uns aos outros.
E há que valorizá-lo porque se é verdade que há muitos aspectos de natureza qualitativa relacionados com a actividade artística que são irredutíveis à quantificação, também é verdade que ela tem uma dimensão cultural inegável e que a carta de alforria da actividade cultural no quadro de todas as outras actividades produtivas depende da sua capacidade de poder ser tratada politicamente, de poder ter peso no discurso politico. Tal não se consegue se colocarmos um véu de intangibilidade, e ilegibilidade, sobre os processos e as dinâmicas culturais e sobre a sua expressão para a vida económica e social do país.
Crítica final: não será bem uma crítica, mais um desabafo. O que eu gostava de ler era Mário Vieira de Carvalho (e outros ex-governantes, claro) a reflectir, o mais despojadamente que lhe fosse possível, sobre as razões e os contextos que levaram a que, no seu entender, o seu exercício de poder governativo (que atravessou quase uma legislatura) não tenha conseguido mudar nada de substancial no sector das artes do espectáculo.
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