Eu tenho ciúmes dela. Nunca o admitirei, faz parte do jogo, não o admitir. Gosto de deixar no ar essa ideia de que eles poderão ter a ver com alguma leviandade sua. Mas nessa antecâmara introspectiva onde estou só comigo mesmo, já nem o discuto. Aceito os ciúmes próprios como se fosse uma doença do amor, e ela tem associado um quadro patológico de manifestações muito diversificadas. Quando sinto ciúmes, a única coisa que me sossega não é tanto a escarificação da situação que me levou à insegurança ciumenta, é o lembrar-me de como os ciúmes dela são injustificados. Se estou feliz com a pessoa que amo, o mundo tem a tendência a perder a sua sexualidade. E se isto sendo verdade aos vinte e poucos conflituava muitas vezes com outras questões, agora pode ser vivido com um maior radicalismo. E não será uma questão de perguiça, de comodismo. Os axiomas vão e vêm na nossa vida, transformam-se. Aos vinte, aos trinta, eu repetia o aforismo que anda de boca em boca, a fidelidade é para os cães, a lealdade é para as pessoas. Agora, aos quarenta e muitos, esse aforismo começa a ser um pouco ridículo. Vejo-me a olhar a fidelidade como nunca a vi. É como se fosse uma questão de atenção, de focalização. É uma forma diferente de entendermos o tempo que está em causa, não uma verdadeira ruptura axiológica. Há tanto a distrair-nos da entrega, do possuirmo-nos na dádiva, do vaivém que é irmos e virmos naquela entidade que come à nossa mesa, que dorme na nossa cama, que se passeia connosco de mão dada na noite do bairro, que perdermos algum do nosso tempo em jogos exteriores de sedução, nos parece um desperdício do que é o privilégio essencial de estar por aqui nos dias da rua, do bairro, do mundo. O que muda a posição de cada um em relação à vida, como há quase quinhentos anos o heliocentrismo mudou a nossa atitude geocêntrica, é a forma como nos colocamos em relação à possibilidade do nosso desaparecimento. Há uma altura nos dias da nossa vida em que percebemos que aquela sofreguidão de coleccionar amores como se isso, por si só, pudesse enriquecer a nossa vida, torná-la mais aventurosa, é um tremendo desperdício daquele profundo corte existencial que um amor pode ser. É um ficar sempre a rebolar na epiderme do que um corpo-a-corpo pode consubstanciar. O amor é uma construção ideológica tremenda que partilhamos uns com os outros, e, como toda a ideologia que nos une, tem uma parte fraudulenta, e tem outra parte que vai directamente ao que de mais verdadeiro e essencial tem a experiência humana. Quando apagamos a luz do quarto e nos agarramos à pele do outro, não é a epiderme sensível que agarramos, que apertamos contra a nossa própria pele, e também não é contra a nossa própria pele que a cingimos. É uma coisa simultâneamente mais pequena e maior do que nós, do que aqueles corpos estendidos, uma luminosidade que rebenta com a nossa contingência. Não sabermos explicá-lo não nos deve amedrontar. Deveremos preocuparmos apenas se não o conseguirmos sentir. No entanto, sobrevive um problema: não foi por capricho que inventámos a traição, foi por condicionalismo ontológico, e - Arno Gruen terá sempre a razão dos nossos espíritos apoquentados pela dúvida e pela angústia - não há amor, nem nada, que sobreviva à traição do eu. Trata-se de um problema sério que nenhuma idade resolve. As nossas vidas são como as nossas casas, cheias de truques, de engenhocas, de artesanias. É por isso que arranjei um pequeno estratagema para sobreviver ao dilema: quando começo a precisar de encontrar uma outra mulher, olho-a como se fosse a primeira vez que a visse. E traio-a, intensamente traio-a com a primeira mulher que nela, me aparece.
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