quinta-feira, novembro 25, 2010

Temos que mudar tudo

Uma das coisas que mais gostei de ver ontem, foi esta ideia de que o descontentamento que motivou a greve não pode ficar por ali, pelo dia 24. Alguém ontem no facebook chamava a atenção para a necessidade da esquerda encontrar capacidade, ideias, gente, para conseguir promover ideias que permitam que as pessoas possam viver melhor. Entendo aqui a esquerda como um ponto de partida, não de chegada. Para isso a esquerda precisa de ser poder.
E precisa de ser poder reconhecendo que esta necessidade de conquistar o poder foi a grande armadilha que trouxe as tribos destroçadas da esquerda ao pesadelo existencial em que vivem hoje, entrincheiradas entre as formas de luta do passado e a angústia de terem dentro de si uma ideia de vida que sabem, sou dos que acreditam nisso, por ser mais solidária, por ser mais festiva, por ser menos reducionista e materialista, poderia levar as pessoas a viverem melhor.
Ou seja, sejamos claros: a esquerda tem não de conquistar o poder, mas tem de saber conquistar para o poder esta capacidade de o implodir, de o fragmentar, de o espalhar, de cumprir essa utopia da esquerda antiga, mas tão contemporânea, que é compreender que devolver o poder às pessoas é esse momento em que devolvemos ao poder, as pessoas. É voltarmos novamente ao face a face, mesmo que ele seja também este face a face tecnológico e digital em que nos encontramos neste momento.
Ou seja, temos de reencontrar o espantoso poder que vive em cada um de nós, na forma como nos transformamos numa energia que redobra quando olhamos o outro, nós no noutro, temos de ser capaz de implodir as ideias feitas de felicidade, de promessa de um mundo melhor que é, bem espremido, um monte de trampa seca, daquela que já nem fede. Temos de voltar mais uma vez á cultura e temos também de a implodir. As pessoas só vão viver melhor quando tiverem dentro dos seus sonhos uma vida melhor que seja mais consciente do que é vivermos num mundo partilhado, onde um conforto aqui é uma tempestade de ódio, violência e morte nas paisagems mais recônditas do mundo. Só, e repito-o mais uma vez, na aldeia global o recôndito dos lugares já não existe.
Quando começarmos a fazer este trabalho de mudança, os nossos representantes serão melhores. Mais atentos às nossas ruas.
Vivemos numa crise da sociedade da representação (raramente analisamos a crise na educação por este prisma e é por aqui que ela é mais dinâmica, mais interessante). Uma crise que é um desajustamento entre representantes e representados. Cada um de nós sente que tem uma identidade mais rica do que há dez anos e, paradoxalmente, sente que tem representantes mais pobres, mais toscos, mais limitados. Cada um é a expressão de si próprio. Como na Grécia há milhares de bárbaros lá fora que não acedem à internet, que não têm avatares, que não têm nicks, blogues, facebooks, twiters, mas através destes ágoras a democracia virtual criou uma cidade virtual que funciona como modelo do mundo inteiro.
Ao mesmo tempo que recusamos aos nossos representantes tradicionais essa capacidade de nos representarem ( a catarse Obama é, pela forma como parece baralhar tudo, bem um momento muito especial dessa crise da representação) e que parece que construimos a nossa identidade através de uma ligação indestrutível ao acesso à comunicação, somos tão frágeis que deixamos que a nossa angústia do existir se aplaque com mensagens comunicacionais que nos levam a consumirmos ideias de nós como se comêssemos chocolates.
Ideias de nós que são ideias redutoras de nós. Pequenos mitemas de avestruzes com a cabeça enfiada no pantâno. E zás, quando de repente me ia sentar ao computador para me ligar ao mundo fabuloso das redes de informação que suplantam a biblioteca de Alexandria - e vejamos o que isso é em filósofos, artistas, santos, criadores, estadistas, milhares de anos de história! - fico ali de olhos em bico, preso a um avatar numa quinta virtual, onde com cliques (nickles!) vou distribuindo presentes, afectos, gostos de isto (num leque de opções que não inclui o não gosto, apenas a desmarcação), gostos daquilo e de repente já estamos outra vez tão pequeninos, tão pequeninos, que até o ferrar roché do Ambrósio ou um esta semana o pingo doce tem para si, nos parecem o céu na terra.
Enquanto não conseguirmos resolver este problema de construirmos uma identidade onde a consciência do outro e do mundo seja maior, os nossos representantes, enquanto representação de nós, serão sempre uma merda. E o pior disso é que serão o nosso auto-retrato. Por isso o poder se aproxima tanto de um exercício esquizófrenico.
Temos de voltar aos lugares e à cultura. Nunca pensei nisso antes. Não tenho o hábito de pensar no país enquanto lugar. Não sou nacionalista, nunca fui, e esse desapego levou-me a ser incapaz de pensar em Portugal de uma forma original. Mas apercebo-me que o nosso país está provavelmente num lugar privilegiado, pela sua pequena dimensão e pela forma como não construiu memória, ou como a única memória interessante que conseguiu manter de uma forma persistente foi a de um tempo em que procurou sair de si mesmo. O modo, como ao contrário de outros países, nos libertámos da posse colonial talvez passe por aí. O território pesa-nos. Nós não somos conquistadores. Somos aventureiros. Vejo as coisas na perspectiva do teatro, este pequeno mundinho onde ainda vou conhecendo alguma coisa. Durante este último ano, através da colaboração que tenho com a Rua de Baixo, tive o privilégio de acompanhar mais de perto a produção teatral e cultural. E fui-me espantando, ao longo do tempo. Nós somos muito maiores, muito mais dinâmicos, muito mais aventureiros, do que poderíamos pressupor por aquele pequeno mapa que a Direcção Geral das Artes tem para se guiar na sua relação com a actividade teatral e cultural. Temos projectos que são farol no campo das artes performativas. Temos companhias que são candeias na noite para a actividade teatral internacional. Temos festivais e pontos de encontro que têm peso europeu. E se isto é apenas uma pequenissima parte do mundo que um ser privilegiado pode ver e ouvir sem sair de Lisboa, imaginem o resto.
Esta ideia esquizofrénica de poder estrangula tudo isto. Vivemos todos muito preocupados com o tipo que ganha três milhões de euros em prémios na PT. Estou-me ralando para ele. Não há, e estou-me a repetir outra vez, nenhum nós entre mim e um tipo que ganha três milhões de euros em prémios. Para mim é um doente, um doente sofrendo de uma patologia social que gostaria de ver erradicada. Da mesma forma que temos campanhas para combater a pobreza, os diabetes, o cancro, também deveríamos ter para combater a doença dos que ganham três milhões de euros em prémios e acham isso muito natural.
O que eu estou preocupado é em saber como é que posso contribuir para uma sociedade em que isto não seja possível acontecer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por coisas boas