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quarta-feira, maio 07, 2008

Há vinte anos depois

Estou quase a ser feliz, pensei. Aliás, disse-o de outro modo: se o máximo de contristura que consegues é esse olhar vazio de mundo, está na hora de escancarares o riso e fazeres a tua hora. Já houve um tempo muito antigo onde eu percebia as coisas. Percebia perceber. É certo que hoje sei o quanto menos sabia então em relação ao conhecimento que se espalhou por tudo o que sou: pele, olhar, pensamento, desejo, vontade, ânimo, querer. Mas sabia e agora não sei. Hoje não só não sei como até estranho esta minha capacidade de continuar no jogo não sabendo. Não percebo nada do mundo onde vivo. Vai-se-me escapando até o sentido da vida que vivo. Acordei e pensei, hoje vou tardar-me em mim. Tomei banho e uma vontade súbita de música despertou-me. Fui até ao seu leitor de dvds, em cima a cara inconfundível de milton, sentinela e caçador de mim, esta canção que já foi uma minha bandeira. Penso por momentos no enorme que é não tanto amar, sim o amor acontecer desta forma inquestionável. Talvez por isso o meu desafecto crescente pela linguagem. Ando a escrever o mundo pelo avesso da linguagem. A minha médica disse-mo por outras palavras quando me viu os exames desta rotina de ex-fumador: bela respiração esta, sim senhor. Nos meus tempos antigos eu pensava que cada um devia cada coisa ao mundo. O dom da vida, do nascer, do andarmos aqui, era também esse sentimento de gratidão, de dádiva aos outros. Eu creio que muitos dos meus amigos ou das pessoas com quem partilhei pedaços de vida, mesmo que muitas vezes o retrato público dos seus actos possa ser bem diferente, agiram nesse propósito. Passou-se muita coisa desde esse pensamento juvenil até hoje. Deixei de ser um jovem. Sinto-me leve como uma criança mas deixei de ser um jovem. O mundo não espera nada de mim, não tem razão para o fazer. Aliás, o mundo não existe. Existes tu ai às voltas para me compreenderes. Ou para te compreenderes naquilo que escrevo. Atrás de mim agora Tom Jobim. Amo a costela brasileira do meu amor. O mundo não espera nada de mim nem eu nada do mundo. Há vinte anos eu pensava que se chegasse aqui, a este não perceber, me suicidava. Hoje, na bonomia com que olho o que fui penso que se alguma réstea da dureza ideológica da minha juventude me restasse eu diria que há vinte anos essa minha necessidade de perceber foi um suícidio diário. Uma sangria de tudo. Talvez seja uma obsessão: não acredito na linguagem. Às vezes vêem-me em silêncio e pensam-me triste e eu a entristecer-me a sério pela forma como esse olhar quer tornar inevitável que eu explique a minha não tristeza por palavras. As palavras estão doentes, as palavras são a doença. Eu sei que a doença é a própria vida, é esse o nosso paroxismo, mas isso não quer dizer que nos entreguemos festivamente às palavras. Devemo-las dizer com nojo. Neste mesmo momento há alguém que nos mercados mundiais está a vender a paz, a tranquilidade, o bem estar, a possibilidade humana de milhares, de centenas de milhares de pessoas e está-o a fazer com palavras, as mesmas que utilizo para abrir um pouco este vale, vale?, cratera, que é o meu pensamento. Há vinte anos atrás eu não sabia que se chegasse aqui a este lugar não só não me suicidava como começava a sentir a minha pele na música que vem por detrás de mim. Que tenho esperança neste dia. Neste dia onde mais uma vez chego ao meu beco: a única forma de estabelecer algum continuum com aquele que fui é continuar a escrever, como me dizia um amigo meu, a escrever, não a cantar. É isso que se pode esperar de mim: a metamorfose que é olhar a chuva miudinha lá fora e pensar, diante do meu desejo de que a chuva cresça: será que vai chover o suficiente para que as alfaces que transplantei ontem - e que têm estado tão murchinhas, coitadinhas! - vinguem, e que na sua vingança se tornem tão viçosas como as suas irmãs no canteiro ao lado?
Estou quase a ser feliz, penso.

quinta-feira, abril 10, 2008

A Vingança

Fez ontem uma semana. Eu e o Pedro andámos a semear Alfaces. Alface Rainha de Verão e Alface Maravilha de Inverno. Em dois canteirinhos lado a lado. Demarcámo-los com canas, atadas por um cordel. E como se nos pudéssemos esquecer dos nossos feitos, numa colocámos uma etiqueta com o nome da Alface. Depois regámos. A primeira rega é de amor. Ía chover, estava anunciado, não importava. E ontem, numa aberta entre chuvadas, fui ao canteiro rejubilar-me: as alfaces, são ainda um pequeno mar de verde frágil, vingaram.

segunda-feira, março 31, 2008

Guantánamo Kintal

No outro dia estava no quintal a arrumar umas coisas num armário. Abri a sua portinhola e devo-a ter deixado aberta por uns instantes. Quando a fechei, tranquei-a. Passaram-se assim os dias, alguns, mais do que três e menos do que sete. Por vezes ouvíamos um miar do lado da janela, mas como é o sítio onde dois ou três gatos vadios se costumam aninhar do frio não ligámos. Está fora de questão algum tipo de guerra química para afastar a bichanada mas também não abrimos precedentes. Para os mais afoitos, que não se importam de conviver com a proximidade dos humanos, damos pernoita simples, sem comedorias (os menos esquisitos lá levam com pequeno almoço continental, ou seja, mordiscadelas nas couves ou nos pimentos bebés) e portanto aqueles gemidos lancinantes que só eles sabem dar comoveram-nos até ao osso mas não nos quebraram. Até que um dia, já lá iriam pelo menos três e ainda não sete, ela ouve um restolhar dentro do armário, vindo da divisória inferior. Esta tem talvez disponíveis um meio metro de comprido por trinta centímetros de alto. Uma cela que se assemelhava a uma daquelas frigideiras do Tarrafal. Sem latrina nem comida. Quando a abre, salta de lá um bichano esbaforido, meio a cambalear, magro, esquálido. O seu interior estava impraticável. Fedia. Uma mochila, estava estrilhaçada pelas garras - e pelo desespero - do felino. Havia restos de quase tudo. Um rasto de fome, de desespero, de tortura. Contra todos os princípios disciplinares do quintal, lá andei a chamar pelo bichano para tentar consolar-lhe o estômago com uma mistura de remorso e arrependimento. Nessa noite o sono tardou. Era o peso da alma.