segunda-feira, março 31, 2008

Guantánamo Kintal

No outro dia estava no quintal a arrumar umas coisas num armário. Abri a sua portinhola e devo-a ter deixado aberta por uns instantes. Quando a fechei, tranquei-a. Passaram-se assim os dias, alguns, mais do que três e menos do que sete. Por vezes ouvíamos um miar do lado da janela, mas como é o sítio onde dois ou três gatos vadios se costumam aninhar do frio não ligámos. Está fora de questão algum tipo de guerra química para afastar a bichanada mas também não abrimos precedentes. Para os mais afoitos, que não se importam de conviver com a proximidade dos humanos, damos pernoita simples, sem comedorias (os menos esquisitos lá levam com pequeno almoço continental, ou seja, mordiscadelas nas couves ou nos pimentos bebés) e portanto aqueles gemidos lancinantes que só eles sabem dar comoveram-nos até ao osso mas não nos quebraram. Até que um dia, já lá iriam pelo menos três e ainda não sete, ela ouve um restolhar dentro do armário, vindo da divisória inferior. Esta tem talvez disponíveis um meio metro de comprido por trinta centímetros de alto. Uma cela que se assemelhava a uma daquelas frigideiras do Tarrafal. Sem latrina nem comida. Quando a abre, salta de lá um bichano esbaforido, meio a cambalear, magro, esquálido. O seu interior estava impraticável. Fedia. Uma mochila, estava estrilhaçada pelas garras - e pelo desespero - do felino. Havia restos de quase tudo. Um rasto de fome, de desespero, de tortura. Contra todos os princípios disciplinares do quintal, lá andei a chamar pelo bichano para tentar consolar-lhe o estômago com uma mistura de remorso e arrependimento. Nessa noite o sono tardou. Era o peso da alma.

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