segunda-feira, junho 30, 2003
Fui ao sotão. Encontrei este texto de 1994. Nessa altura não havia blogs. A gaveta, caminho directo para um sotão de papel amarelecido era a solução para todos estes materiais mais ou menos inclassificáveis. Vivam os Blogs!
Turma dos Repetentes
O meu primeiro dia de escola foi em quase tudo igual ao dos outros miúdos. Que me lembre só não teve a indispensável lágrima ramelosa ao canto do olho. Ainda balbuciei um sumido " deixa-me ir contigo" quando a minha mãe me prantou ao pé da professora e passou o testemunho " Ó Colega, se ele as pedir não se acanhe. Trate-o como aos outros." mas ela não me ligou. O resto, bibe a preceito, mala com cadernos novos e borracha perfumada, termo com leite achocolatado e tupperware recheado com bolacha torrada forrada a doses latagonas de manteiga caseira - hei, só no primeiro dia, malandragem, que os frades eram muitos e a ordem não era rica - também me calhou graças a deus. Até aquela irreprimível excitação do primeiro passo de uma metamorfose que nos levaria à lua ou ao céu, ninguém sabe para o que está guardado.
A seguir ao primeiro dia veio o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto . O primeiro mês. O segundo , o terceiro, o quarto, o quinto . O primeiro ano. O segundo , o terceiro, o quarto, o quinto, os anos repetiram-se velozmente, até aos treze. Depois, tinha dezanove, à escola disse não, andei dez anos a navegar ao desbarato na urgência de ser . Regressei quando o estado larvar era cada vez mais um infinito passado, à medida que me crescera a barba, a pila, a própria baba, outra matéria se moldara num projecto tão adiado como irrecusável : a minha personalidade. O meu feitio. O que sou e nunca serei. Cresci separando-me, apartando-me de uma pele que já foi alma, só depois, camada por camada, supérfluo epidérmico. Não sendo fadista fui dor também. Dor que doi, a dor, a de Duras, a minha , a tua, a nossa, evocativo singular, dor que doi doida, que endoidece.
Quinze anos nos bancos da escola. Dois mil seiscentos e quarenta dias, vinte e uma mil cento e vinte horas passadas na condição de aprendiz de coisa alheia. E por outro lado anos, dias, horas inconfessáveis vividas em cima de um estrado na minha profissão de comunicador . O que é aprender ? Livros, mestres? Obras? Sento-me na minha cadeira de discente. Indigente. Na sala trinta resistentes cabeças . Ao todo, mais coisa menos coisa, quatrocentos e cinquenta anos, setenta e nove mil e duzentos dias, seiscentas e trinta e três mil e seiscentas horas na missão quase impossível de aprender a aprender. E a mesma hesitação, o mesmo “ não saber que “ do primeiro dia de aulas quando num ambiente de mistério a professora Antónia, uma princesa, uma princesa rodeada de vinte duendes de pele rosada pelo frio, fazia os primeiros rabiscos no quadro.
Onde o mestre? No estrado? Naquele actor que não sangra, que não é o sangue? Esta prosa parece o Dom Pepe - o fiat 124 que comprei na juventude das suas vinte e duas primaveras - naquelas manhãs em que o frio se lhe entranha pelas velas e precisa de um empurrão de misericórdia.
Tenho as palavras debaixo da língua, travo-as, a prudência, a minha arqui inimiga , a dona prudência . Esta antiga cavalariça da nova relincha nas suas paredes atentas, somos potros, alazões, cavalos de crista loura esfumada ao vento. Não poderia haver cenário mais adequado para aspirantes à sabedoria, lembro-me, um dos primeiros rabiscos da professora Antónia, ou já seria atónita, foi para explicar a disposição encefálica da sala : à direita a fila dos cavalos, ao meio o Purgatório dos indecisos, à esquerda, por sinal ao lado da janela, a fila dos burros.
Deixei o João Sá Água, doutor de lógica e outras (des) humanidades, para os resistentes. Saí da sala rindo baixinho, vou sentar-me na esplanada, a dona Antónia não soube nunca, não podia saber, o quanto, nas minhas deambulações entre o purgatório e a direita equestre invejava a paisagem que só aos asnos era dada. Faz-me mais falta o espaço exterior do que o dois vez um dois e por aí adiante. O que é aprender?
Nas minhas deambulações pelo mundo - e nunca saí da minha rua - enchi os bolsos de objectos raros. Um dos últimos foi-me dado por um amigo do Porto, músico, professor, dizia ele - maravilhado pelo campo que entretanto descobrira, a psicoacústica - que cada um de nós tem dentro de si uma impressão musical, tão constitutiva da nossa identidade como a digital, que regula todo o universo sonoro que recebemos. Ou seja que cada um de nós só recebe os sons que já tem dentro de si, sendo que essa marca mínima da personalidade sonora de cada um difere de pessoa para pessoa. Continuava ele, apresentando a dimensão ética do seu programa de professor, “a potenciação, a normalização ou o atrofiamento da nossa identidade acústica são as hipóteses que se colocam em seguida”.
Roland Bhartes fala-nos do estilo como a marca anterior e última da expressão de cada um. E Popper incita-nos ao desespero ( infelizmente a revolta está limitada à propinação política ) perante os pedagogos eunucos quando refere como um dos tipos de aprendizagem - oposta à aventurosa, embriaguez diante do ensaio e do erro - aquela em que a repetição atira o aprendido para a zona do subconsciente, do "esquecimento".
Ainda, António Nóvoa, mestre e amigo a quem devo a introdução ao campo do teatro e educação, foi radicalmente lapidar quando no Porto, em Julho de 1992, no 1º Congresso Mundial de Teatro e Educação, concretizou os desafios que se colocam hoje em dia à experiência pedagógica : maior protagonismo dos actores educativos e uma maior criatividade nas práticas de ensino. ; nova organização dos tempos escolares rompendo definitivamente com uma lógica curricular disciplinar e por fim, uma maior articulação da acção educativa com a comunidade, ou seja, entre outras medidas, a abjuração da tendência da dona Antónia de colocar a fila dos burros ao pé da janela.
Estou sentado na esplanada. A conversar com o Nani, o meu amigo do Porto, Popper, Bhartes e Nóvoa . Rimo-nos baixinho diante destas cavalariças . Conto-lhes que toda a gente achou estapafúrdia a minha declaração de que para escolher a Nova como local de formação, esta esplanada teve maior peso que o facto do corpo docente ter o concurso de notáveis como Tito Balsemão, Mário Mesquita, Adriano Duarte Rodrigues , entre outros.
Explico-lhes o que eles já compreenderam . A questão não é que aprender seja possível também para além da aula. Este acento permissivo de uma escola mater que prescindia assim da exclusividade foi substituído pelo desabafo demolidor de que hoje aprender é possível apesar da aula. Não é apenas a condescendência perante o forum, e esta esplanada não será dos piores, mais do que isso, é o cartografar dos lugares de troca e comunicação como os espaços reais de aprendizagem.
O pensamento humano não sendo irresistível, resiste. À violência, com a liberdade. Com a escolha. Agora desliguei o Sá Água, daqui a pouco silenciarei o Braumam, o Lopes da Silva, o Tito. Cansei-me de esbracejar contra o absurdo de cento e vinte pessoas suportarem num ar rarefeito injecções tremendas de saber que despejarão nuns testes maquinetas a vapor de fazer não sei o quê. Notas? Canudos? Doutores? Imbecis?
Era muito mais feliz esta história se pudéssemos pegar no modelo proppiano e e nos colocássemos como heróis combatendo os vilões, ganhando assim a recompensa que nos transformaria de calimeros em robustos alazões. Mito por mito é preferível o do cavalo selvagem, retomado pelos Resistência.
Viver é engolir absurdos, o outro diria sapos. A liberdade resulta do entendimento que temos dela. A aprendizagem será aquilo que se arriscar neste jogo ilusionista de a recuperar, perdendo-a. À liberdade. Há uma matriz, como diz Bhartes, que é prisão e, ao mesmo tempo, ambígua explosão. Depois é o preenchimento, a ocupação. Fenómeno que se reacende, o fogo está aí. Nunca acreditei no vazio dos anos oitenta. Devorei Lipotevski mas ainda assim o frio, o negro, o cinzento, o mármore, a frieza dos olhares de veludo, o frágil invólucro de que revestimos a nossa geométrica progressão no mundo não casam com a vida.
Ou por outras palavras, a escola, lugar a realizar, é agora self. Artesanalmente self. Longe vai o tempo do bibe, da lancheira, do primeiro dia de aulas.
Abril 94
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário