terça-feira, julho 01, 2003

Descendo do sotão para o meu pc , encontro este texto, que serviu de base à minha comunicação no Encontro de Teatro Ibérico Natália Correia realizado em Évora, e subordinado ao tema "Pensar o Teatro em Teatro de Guerra", a 24, 25 e 26 de Abril: Pensar o Teatro em Teatro de Guerra Pensar o Teatro em Teatro de Guerra. É uma sensação terrível, a de que as palavras que se aproximam não sejam parte daquilo que é necessário escrever. Talvez devesse escrever este texto em contramão. A única coisa que o pode salvar da sua inutilidade retórica, será o meu esforço de branquear a folha, revelando o meu desespero. Desespero de ser ainda com palavras, e através delas, que me dou conta de que só um enorme e profundo silêncio instalado no interior da linguagem poderá libertá-la do cárcere da mentira. Poderá rejuvenescer uma expressão ferida e violentada pelo simulacro e pela deturpação. Tomar consciência de que ao escrever utilizo os mesmos códigos, os mesmos signos, com que outros construíram a retórica da usura e da violentação, trava-me a língua. Trava-me a língua e coloca-me num outro sentido, à procura do avesso da linguagem. Pensar o Teatro em Teatro de Guerra. Assisti ao empolgamento com que Monléon transmitiu esta proposta de reflexão, entre o desespero por se sentir encurralado diante da retórica da besta e da Morte e a excitação e alegria por saber que quatro milhões de pessoas tinham saído às ruas de Madrid protestando contra a guerra. Era um apelo quase irresistível para que o teatro não ficasse do lado de fora desta briga medonha que se joga hoje no nosso mundo. Briga entre quê? Entre quem? Não sei, em concerto não sei. Faltam-me personagens para fazer avançar este Bestiário. Mas pressinto, com uma convicção que até a mim me surpreende, que o dilema é entre a morte e a vida. É entre conseguimos ou não assumir que morremos com a morte do Outro. Que nos embrutecemos com a sua ignorância. Que perdemos a nossa própria humanidade quando o Outro é despojado da sua dignidade humana. Pensar o Teatro em Teatro de Guerra. Nessa mesma noite devolvi aos meus companheiros do Teatro Mínimo a questão que Monléon tinha trazido. José Boavida, o encenador, foi o mais radical: “Vamos ignorá-los! Vamos expulsá-los do nosso mundo, eles não existem, são personagens de uma ficção que enjeitamos e descartamos”. E continuava José Boavida, agora tão empolgado quando eu tinha visto Pepe Monléon umas horas antes: “Bush? Brusch? Hum...tem a certeza? É mesmo esse o nome da criatura? Não será Brecht? Esse conhecemos! Bush? Hum...não, se conhecesse, com esse nome, lembrava-me...” Pode parecer algo pueril esta resposta, admito. Não se brinca com coisas sérias. Embora seja mesmo com as coisas sérias que se deva brincar. Zombando da sua seriedade. O nosso riso é tão fecundo como monstruosa é a nossa instalação forçada num ambiente de guerra que é em sim mesmo a morte do pensamento. Ou pelo menos a sua suspensão. Pensar o Teatro em Teatro de Guerra. Começou a guerra. O Jornalista em directo fala excitado sobre uma imagem onde a quietude é total. Incrédulo o jornalista desabafa: “Ouvem-se apenas o barulho dos pássaros aqui em Bagdad”. Abençoados pássaros cujo canto não se rende, penso de mim para mim. Já estamos dentro da guerra, a guerra está dentro de nós. Mas no entanto a cidade continua quieta, calada, apenas os pássaros se manifestam. O jornalista faz complicados cálculos balísticos para poder anunciar que dentro de vinte minutos os mísseis disparados pelos porta-aviões, se despenharão sobre os céus de Bagdad. Serão vinte e cinco minutos de um silêncio torpe, entrecortado por um mavioso chilrear de pássaros, à espera dos mísseis. Ou de Godot, não interessa agora os preciosismos. Pensar o Teatro em Teatro de Guerra. Por detrás desta instalação numa situação de guerra que já se interiorizou em cada um de nós, há uma outra guerra, e essa é que é importante, é que é decisiva. Há um combate que talvez nunca devêssemos ter neglicenciado mas que agora, na noite do pensamento desaparecente, nos convoca para sempre. Sem dúvida que sempre é muito tempo e nós temos tão pouco, mas a partir de agora, sempre é sempre. Sabemo-lo, é difícil perceber o dilema do nosso mundo com o advento de uma propaganda que desonra o espírito das democracias de que tanto nos ufanamos. Manchando-as com a sua incapacidade de compreender o seu próprio tresloucamento. É a besta que convocam, ou, como escreveu Séneca, ou ainda como disse a Cornucópia no seu magnífico e actual Tiestes: “muito ávido à da vida quem não aceita morrer quando consigo vai morrer o próprio mundo”: Pensar o Teatro em Teatro de Guerra. Gilles Lipovetski, em A Era do Vazio, anunciou um mundo, o nosso, em que cada um seria expressão e riso de si mesmo, banalizando a expressão numa espécie de autismo ensurdecedor. Hoje tomamos consciência, de uma forma brutal, que poderemos estender o anúncio de Lipovetski, à “representação”, instituição base da democracia política. Reconhecendo que o divórcio entre representantes e representados advém também da condição esquizofrénica instalada pelo actual exercício da representação. A maioria silenciosa abstencionista não ocupa só as franjas crescentes dos excluídos do sistema. Somos estes cujo acesso online ao mundo da expressão nos atribui a ilusão do poder da auto-representação, mesmo que caricatural e simulada, e somos aqueles que são representados por pessoas a cuja escolha, nossa, atribuímos cada vez menor importância. Preocupante: num número assustador de casos, milhões de pessoas com um acesso sem paralelo ao conhecimento, à cultura, são representadas por líderes ignorantes que tropeçam alarvemente num mapa-mundi. Cultivámos a ilusão de que era possível coexistir pacificamente com um mundo dividido em dois: de um lado a política, um mundo cada vez mais artificial nas sociedades actuais, do outro o nosso espaço vida quotidiano, a nossa presença no presente. Esquizofrenicamente entalados entre um poder instituído que perdeu a capacidade de nos representar e emergentes instituições da era virtual que nos prometem a integração numa comunidade volátil, sem deus nem chefe, começamos a perceber o limite do nosso desinteresse, as consequências da nossa cumplicidade. O perigo que esta apatia representa para a sobrevivência do nosso mundo. Temos de ser mais ágeis que o vento, urge tornar tudo o que fazemos, até o modo como respiramos, num intenso combate pela paz. Pensar o Teatro em Teatro de Guerra. Não conheço forma de viver mais intensamente a paz do que a entrega apaixonada ao exercício de viver, quer por parte dos homens livres, que serão sempre raros, quer por parte daquela imensa mole que encontra na ânsia de ser livre, a expressão possível da sua liberdade.

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