segunda-feira, julho 14, 2003

Eu não disse mal da vida que levamos, Maurício!

Ele há coisas. Tinha andado com um post minimo na cabeça. Esse pegou-se a outro. Era um pequeno excerto de um texto dramático. De repente fui à procura e entrei por "Seis" a dentro. E talvez este seja o post mais longo que tenha feito. "Seis" é um texto de 87. Foi a minha primeira peça "a sério". Em que me deixei contaminar pelos ambientes, pelos personagens. Pelos silêncios. Nessa altura era actor no Teatro Experimental de Leiria. Foi uma experiência um tanto ou quanto esquizóide. Ficava todo o dia em casa e hás seis da tarde corria para a representação de "A Noite Antes da Festa!", no Mercado de Leiria. Nos primeiros momentos de contacto com os outros, ainda estava com a voz entarmelada, metida para dentro. Soltava-se pouco a pouco. Depois do espectáculo ceava rapidamente, muitas vezes com o Valdemar Sousa, o Rui Sérgio e o Pedro Oliveira, e lá ía a correr para aquele apartamento no fim do mundo que o TELA me tinha arranjado. E lá me ía meter dentro do texto, porque é verdade - o Abel Neves disse-o no outro dia e eu gostei de o ouvir - vivemos dentro dos textos que escrevemos, podemos inventar portas e janelas mas é no interior destes que nos colocamos, que nos escondemos, que nos revelamos. Aqui fica, é logo a entrada da peça: Prólogo ( Há um desenho progressivo das personagens que pode ser traduzido por luz, som, etc...É noite. Jorge (um), Antónia (uma), Duas (Duas) Maurício (Dois) estão numa esplanada perto da praia.) UM (Jorge) Teus olhos, Sabes? UMA (Antónia) Sei... UM A sua cor... UMA Um espelho de languidez... UM Ou uma cratera. Dois buracos no imenso. UMA A paixão com que falas, Jorge...falar é feminino... JORGE Falo muito pouco...por pudor...não sei... UMA Fascina-me isso no teu olhar, nunca sabes... JORGE Mas falar por falar não... (silêncio) JORGE Eu disse que falar por falar não... (Silêncio) JORGE Lembras-te ainda, Antónia?! ANTÓNIA Claro que me lembro... (Silêncio) JORGE Não é todos os dias que se vivem certas coisas. ANTÓNIA Pois não, Jorge. (Charlie Parker. Jazz) DUAS Não são amorosos os dois... (Dois ri-se de gozo.) JORGE A vida desenrola-se diante do esquecimento... ANTÓNIA Um dia deixamos de existir... (Jorge ri.) DOIS A sua mulher tem razão. Um dia deixamos de existir. DUAS Ninguém disse que ela não tinha razão, Maurício. MAURICIO Claro, querida. ANTÓNIA Só damos por isso quando pagamos o cortejo fúnebre. MAURÍCIO O próprio oficial de cerimónia... JORGE Morrer não é uma cerimónia...é um desacato. (Continuava a ser Parker. O incrível Charlie Parker.) DUAS Há um lugar que eu nunca conhecerei... JORGE (Sorrindo) A tua casa? MAURICIO (Perturbado) A nossa casa?! DUAS Esse lugar é a memória. (Silêncio algo comprometedor.) DUAS Ás vezes apetece-me falar... MAURICIO Está a ser difícil não está, querida? Também estou farto de andar de um sítio para o outro... DUAS Não faz mal, Maurício. Era um desabafo. JORGE Não podem mudar a música? Estou farto de ouvir Charlie Parker. (Silêncio. A música calou-se bruscamente.) DUAS Charrie Parker era negro. MAURICIO Na nossa casa haveremos de ouvir Charlie Parker... DUAS Eu não disse mal da vida que levamos, Maurício. MAURICIO Eu sei, querida... (o empregado avisa-os de que o café vai fechar.) MAURICIO Vamos? DUAS Nós vamos ficar mais um pouco Maurício. ANTÓNIA Até amanhã, Jorge. Tenta não fazer barulho quando te deitares. (Antónia e Maurício saiem) CENA 1 A luz da esplanada acende-se e apaga-se três vezes. Eles levantam-se, começando a caminhar. O som do mar aproxima-se. DUAS Detesto o mar. Sempre o detestei. (Jorge não responde) DUAS Detesto o mar, Jorge. Sempre o detestei. Desde pequena... (Jorge ri.) DUAS Não dizes nada? (silêncio) DUAS Podias ser mais atento. JORGE Detestas o mar, desde criança... DUAS Há pouco tinha dito que não sei o que é a memória... JORGE Também ouvi. DUAS Não te parece contradição? Não sei o que é a memória e lembro-me... JORGE Não querias falar ao pé do teu marido. DUAS Eu amo o meu marido. JORGE Eu sei. E detestas-me. No entanto sou o único que ainda te ouço. DUAS Fala-me de ti...prometo que daqui a pouco pensarei que és humano... JORGE Estou aqui para te ouvir...e ao mar, se não falares muito... DUAS Odeio psiquiatras. Odeio-vos. Têm dentro de vós todas as doenças de todos os doentes do mundo...Odeio-vos... JORGE Mas precisas deles. É o drama de muitos, necessitarem daqueles que odeiam. (Duas anda de um lado para o outro. Silêncio demorado. Pára) DUAS Reconheço-te uma certa razão. JORGE Infelizmente, também. DUAS Detestas a tua profissão. JORGE Estamos aqui para falar de ti... DUAS E para ouvir o mar... JORGE Eu sei. DUAS Porque preciso de gente como tu?! (silêncio) DUAS És desconcertante... JORGE É a minha oportunidade de ser útil. Para o resto não sou necessário. DUAS Queres dizer que só me lembro do que quero? (Silêncio) DUAS Então porque me lembro das coisas que me desagradam? JORGE O quê, o passado? O passado não dói, não sangra. Mergulhas nele, aconchegas-te às tuas mentiras, as tuas ilusões. O desagradável é o presente. É do presente que tu tens medo. DUAS Posso lembrar-lhe que é o meu psiquiatra? JORGE Vai à fava! (PersonagensJORGE AUGUSTO- Médico psiquiatra. Tem entre quarenta e cinco e cinquenta anos. Pai de Pedro e marido de Antónia/ ANTÓNIA - Mulher de Jorge, mãe de Pedro. Doméstica, filha nova do que Jorge./ DUAS-Mulher de Maurício, mãe de Inês. Reformada. Tem entre quarenta e quarenta e cinco anos./MAURÍCIO- Marido de Duas e pai de Inês. Caixeiro Viajante. Tem entre quarenta e quarenta e cinco anos/ PEDRO- Filho de Jorge e Antónia. Vinte e três anos. Estuda./INÊS- Filha de Duas e Maurício. Vinte e cinco anos.- Desempregada) (Acção: Jorge, o psiquiatra de Duas, que está a ter problemas com a evolução do tratamento de Duas, antes de deixar de ser o seu psiquiatra, sugere que esta vá, com o marido, passar uma semana com ele e Antónia, a sua mulher.)

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