segunda-feira, setembro 29, 2003

Ainda o Ultimatum

Lisboa dos quintais. Os prédios juntam-se formando uma clareira protegida por cimento e argamassa. Ouve-se, pressente-se a cidade lá fora. Agora não insuportável nem arrogante. O passar dos carros na rio de janeiro. mesmo ali ao pé da casa onde viveu o poeta. Vê-se o pára-raios dos bombeiros, um ponto luminoso como sinal para o tráfego aéreo. A minha vida nesta cidade está ligada a estes enormes pássaros de fogo. Primeiro os Olivais, agora aqui, do outro lado. Escolhemos esta casa por causa deste quintal. Um silêncio de dentro com um ruir sussurado no fora daqui. Os cães do vizinho calaram-se deixando de atear um latir que se incendeia ali e acolá, repasto das vozes caninas. Em cima do pequeno muro do meu quintal está um gato. Não deu por mim, deitado na rede entre o limoeiro e a pereira velha, apodrecida, que só serve mesmo como penduricalho de um baloiço do miúdo e de trave para esta rede onde, balançando, me embalo. O gato avança pela minha imobilidade adentro, nem o ruminar dos meus pensamentos, nem a chegada daquele outro eu com quem ando a adiar conversar, o assustaram. - Podemos falar agora? - nem levantei os olhos, fala, disse-lhe, fala para aí. - Vai fazer cinco meses que tens o blogue. - A ampulheta como medida de todas as coisas. É sempre assim. O repente, aquele instante de luz que vem como se vai e que assim, repentinamente, justifica uma existência, nunca se mede. Andamos uma vida inteira como garimpeiros a malhar na serra madrasta, na esperança de que um dia o metal da picareta faça faísca com o click do universo e o inquérito é sobre isto, sobre um amanuense que nos conta a inutilidade do permanecer. Não lhe respondo. O auto inquisitorial que arranje força e argumentos para se entretecer e continuar sem mim. Ele acusou o toque, desfez-se num paternalismo serôdio: - Quando quiseste criar um blogue não te disse nada. Até disse cá para os meus botões, antes nos blogues que nos newsgroups, nos chats, no icq. . - Eu sei.- respondi. Era verdade. Não sei se sempre esteve comigo mas nunca lhe senti o avesso. A censura. Para dizer a verdade até andava a estranhar a sua ausência. Até pensei, está no seu engalfinhanço de Verão. Os anjos não terão sexo mas as almas são anjos tresmalhados. E a minha engalfinha-se, sinto-o, pelos odores, pelo despreendimento com que me acorre, a disciplicência, engalfinha-se, sei. - Já leste o teu blog de trás para a frente? A mania que este gajo tem em pedir a minha colaboração! O tipo não sabe os meus direitos civis?! Menti-lhe: - Nunca leio o que escrevo. - Mas devias. Em cinco meses, e para além dos textos que foste buscar ao sotão, sobre o que é que escreveste? - Deixa-te de merdas! Escrevo sobre o que me vai na al... - calei-me. Tinha sido apanhado em flagrante delito. - A tua alma sou eu, canalha. Sobre o que aqui vai sou eu que te digo, e devagar, sussurando, aos poucos. Da tua alma só sabes o que te conto, mentiroso. Se não te entretivesses tanto com essa tua reactividade ao que lês aqui sobrava-te mais tempo para te encontrares com ela. - Estás-te a queixar? - Ele sorriu, vencedor. Estava-lhe a ser tudo muito fácil. Outra vez apanhado em flagrante. Ele não se queixa, na burocracia espiritual onde me encontro as queixas são comigo. Em triplicado. Uma cópia verde, uma amarela e outra azul. É verdade, até me baralho sempre com as cores. - O que é que queres que eu te diga? - Não vires o bico ao prego. Agora a única coisa que quero é que deixes de fazer ouvidos moucos. - Tá bem, abelha. Pode não ser muito cómodo mas, falo por mim, a rendição de cada um diante da sua própria alma não é pecado que releve. Rendi-me, sim. E ele falou, falou. Debitou os meus pecadilhos na blogosfera. Ele até sabia de cor todos os comentários que eu andara a espalhar por aí. Há alturas em que a melhor defesa é deixar vir a enxurrada. Entre lama e sargaço deve haver alguma água que, na sua dimensão líquida, lave os corpos e enxugue a alma. E de facto grande parte do meu tempo passado aqui é a estabelecer empatias com o universo escrito. Ou em recados, falsas polémicas, um olhem que existo, que penso, que escrevo que tanto me irrita nos outros mas que lá vou deixando passar nas alfândegas do meu ridiculo. Ainda não tinha terminado o seu rol, interrompi-o, falhado o período experimental assumiria de motus próprio o famigerado Delete Blog. Fizemos as pazes. E um acordo em não sei quantas alíneas sem silabas de letra miudinha. Com um único ponto: naqueles dias em que o motor parece não querer arrancar, nem de empurrão, faz-se uma ligação directa à alma .

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