quinta-feira, setembro 25, 2003
Ultimatum
Levantei-me. Ainda com os olhos meio fechados abro a torneira da água quente para o duche, quando de repente ouço uma voz, vinda do outro lado do espelho:
- Estás em contagem decrescente!
Era um outro, eu, mas um outro. Abusando da sua imaterialidade, da sua dispensa daquele circuito matinal que nos devolve, senão a vida, pelos menos o ar respeitável de cães amestrados. Calei-me, há alturas em que nem para nós mesmos temos pachorra. Ele insistiu:
- Estás em contagem decrescente, meu...
Esta do meu era para me provocar, já o conheço. Quarenta anos a aturarmo-nos um ao outro dispensam manual de instruções. Por vezes anda atrás de mim, como uma sombra, outras fila-se assim, na sua imbecilidade de dinossauro razoável.
- Quando eu for, tu vais comigo, sacana...já falámos sobre isso centos de vezes.
- Estou a falar do teu blogue, cretino.
Deixei-me estar. Não discuto o meu blogue em público, é uma reserva minha. Ninguém tem nada com isso.
- Agora faz-te despercebido. Estás em contagem decrescente. Três semanas, bronco. Ao fim de três semanas vou lá e "DELETE BLOG".
Não lhe disse, mas nesse momento tive a noção muito clara da inutilidade dos meus dias gastos aqui. Pensei cá para mim, "que se lixe". Foi tudo rápido demais mas ainda tive tempo de ver um carreirrinho de coisas que se atrofiam na agenda à espera de entrarem enquanto me sento aqui a fingir quotidianos. Até pensei, é da maneira que brinco mais com o meu filho, com a minha mulher, que acabo as minhas peças, horror a este sangramento diário de uma coisa que, bem vistas as coisas, nem é sangue, nem sangra, nem é nada senão um simulacro da dor de existir..
- DELETE BLOG... - insistiu o OUTRO, eu.
Fui-me a ele. Pura estratégia. Não em defesa do blogue, ele é há muito indefensável, mas para evitar que, ao descobrir-me o desafecto, ele se atirasse às canelas daquilo que realmente me é importante e decisivo. Respirar o mesmo ar.
- DELETE BLOG! É um nome porreiro para um Blogue, esse...DELETE BLOG. Também estou farto de respirar o mesmo ar...já há muita gente a extirpar-lhe o sentido, pensam que é um desejo de inventar uma comunidade qualquer quando não era mais do que um desejo vil de incomunidade, uma incompatibilidade com a ideia de um mesmo tempo, não sei se te lembras?
- Não sabes se me lembro?
- Amuos agora não...Às vezes também te ignoro...E as paredes não vêm abaixo...
- Quando é que me olhas nos olhos, cabrão? Quando é que deixas de andar a cirandar a própria cauda e te atiras ao...
- Ao quê? Ao quê? - interrompi-o. Pura estratégia, reconheço. Eram nove da manhã, o puto tinha dormido mal, a ramelagem ainda era uma espécie de persiana meio aberta meio fechada aguentando, cada vez mais a custo, o real lá de fora, ou estancava agora a ferida ou ia ser uma carga de trabalhos. Forçados. Continuei, sem saber bem ao que ía. - Pensas que é fácil, filho da p.? Falar sabes tu. Não tens que pagar a conta do teu delírio, sou eu que te encurto a natureza genial não é? Não é isso que pensas, filho da mãe? Sou eu que te impeço de rebentares, de seres estrondo como aquele foguetório das festas de Stº Ovídio, não é? Vens aqui com ameaças, com chantagens, quem pensas que és, sacrista?
- És patético, Quim. - Não há nada que me tire mais do sério do que ver este canalha a chamar-me pelo nome. O gajo esconde-se na sua não nomeação. deus, ou quem o substitui, porque o céu definitivamente encerrou para mudança de actividade, ausentou-o da nomenclatura do universo. Ele é o Outro, a Sombra, O Id. Tudo merdas inventadas para que quando ando na rua haja sempre alguém por detrás de mim a azucrinar-me a cabeça, a pachorra, os sentidos, o próprio sentido. Chegado a este ponto calei-me. Há tipos com quem não adianta dizer pevide. Deixá-los falar, quando ele fizer Delete vai comigo, é a única partícula do contrato que me agrada, se este salafrário ficasse cá um segundo que seja a saborear a vida sem dor, sem preço, sem reverso, eu desnascia, assim, como ouvi há muito tempo, desnascia.
- Acalma-te...- Pousou-me a mão sobre o ombro. Ele não é mau tipo. No fundo ele vive na sua. E até me deixa viver mais vezes na minha do que na dele. Deve haver uma razão especial para me ter aparecido assim, hoje, sem avisar. Geralmente aparece nos meus dias de folga, depois de eu largar o serviço, nas férias. Confesso, a maior parte das vezes até sou eu que o mando chamar.
- Apanhaste-me desprevenido, desculpa...
- Vou-me embora...A água já está quente, toma lá o teu banho, tens vinte minutos para chegar ao trabalho, tu consegues...
- Afinal o que é que tu querias dizer?
- Não te preocupes, logo, depois de ires ao quintal fazer a brincadeira dos pinhões com o miúdo e de tratares de tudo, vens cá fora fumar um cigarro, deitas-te na rede e nós voltamos a falar...- Sorrio com esta ideia da bincaeira dos inhões. É assim que o meu filho lhe chama. Lá na creche há pinheiros no jardim e todos os dias costumamos ir apanhar uma pinha e encher os bolsos dele de pinhões. Depois, quando chegamos ao quintal, vou buscar um martelo para mim e dou-lhe uma pedra da calçada a ele. E ali ficamos, esparramados no chão, ao princípio, influências da mãe, ainda dizia, tá suo, pai, tá suo!, mas depois percebeu que, se for regrado, há uma vantagem a tirar deste desejo de imundice que, dizem, nasce e morre com os machos. Só desencalhamos daquele casca descasca quando, por volta das oito, a família se recompôe e entramos todos no circuito diário dos banos, da caninha co maxa e da istóia da pinceja ( a ãe onta, pai, a ãe onta, avisa ele) e, se o sono não chegar entretanto, da istóia da dona árvore ( a históia da ona áue o pai onta, tá bem, pai?)) que inventei no outro dia e que vou reformulando dia para dia.
Como em tudo.
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