segunda-feira, setembro 01, 2003

Anonimato

Não poderei concordar mais com aqueles que defendem que, numa democracia, o anonimato como acto cívico e social ( já que enquanto condição do gesto expressivo é estratégia que não discuto mas compreendo e sou até capaz de, em certos contextos, valorizar) é uma atitude que se exclui, automaticamente, da praxis democrática. E vou mais longe: a autoria do material anónimo instala-se em cada momento da sua divulgação (oral, escrita ou telepática). O documento anónimo não existe senão no silêncio e na escuridão. Não é mais do que um espaço em branco, re-autorizado por cada instante de luz que lhe é dado, fornecido. É essa a única autoria que ele reconhece. O documento anónimo é reescrito cada vez que se divulga. Nem que seja por um mero link, e nisso subscrevo inteiramente o recato de o Abrupto. Ainda há pouco tive oportunidade de trabalhar num gabinete de um presidente de um organismo público que foi exonerado justamente por ter dito, numa entrevista a um jornal económico, que para ele as cartas anónimas íam para o caixote do lixo. O Ministro que o tutelava não conseguia fazer conviver estas declarações com o facto de que ele próprio se consumir, e o nosso tempo e dinheiro, em síndicos gestos baseados em denúncias anónimas. Ele parecia não compreender que o que nele era um acto de vigilância que a prática democrática deve aconselhar, no outro era um gesto que a consciência de um viver em democracia deve, em cada um, instituir. Essa foi a versão oficial, pública, publicada, claro. Porque, depois de um história vinda desta longa noite dos assessores que funda e mina a nossa actual república, também poderá ser legítima a dúvida se o que não lhe seria tolerável é que todo esse corpus anónimo tivesse sido enviado para a boca dos jornais com o selo oficioso de garantia de uma conveniente verdade.

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