terça-feira, setembro 02, 2003

A Ira de Deus

Há uns anos atrás, num acesso de raiva e destempero divino, deus levou-me o meu próprio pai. Claro que havia razões para isso, o meu pai já tinha passado os setenta e fumava como um garoto de quinze anos, mas a verdadeira razão - para além daquelas de que fala Alberto Caeiro - é que deus se queria zangar comigo. Não consigo, passados que são quase dez anos, descobrir outra explicação plausível para este arremedo furibundo que me veio dos céus. O meu pai é e será sempre eterno em mim, e deus sabia-o, com esta morte perpétua e diária a que me sujeitou. Zanguei-me com ele também. Na impossibilidade de nele descrer, há muito que não existia no meu mundo, desamei, convicto, pelos relatos dos que nele acreditavam, que o Amor era a única evidência divina entre os homens. Desamei-o desabridamente. O desamor também arde, talvez mais indiferentemente, mas com grande devastação. Desamei a própria vida. Na dança dos contrários, o desamor ganha ao ódio como expressão de desafecto pelo mundo, pelas coisas e pelos seres. Deus deu pelo responso e, num Natal antes da dobradura do milénio ( logo a seguir áquele em que tudo fizeste para eu voltar a acreditar no natal, lembras-te?) fez-me um filho, condenando-me, não menos duradouramente a um amor a que, voluntáriamente, me desobrigara. E assim ando eu pelo mundo, encarcerado num desamor de que nunca me aparto, aprisionado a um amor que diariamente rejuvenesce a flor do mundo. Aprendi a lição, entretanto. Nunca me zangar com deuses dos quais descreio.

Sem comentários: