segunda-feira, setembro 01, 2003

Respirar o Mesmo Terror

1. Citação. "Dizem do rio que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem." B. Brecht. 2. Símbolo. Após a hora de emoção ao saber que Sérgio Vieira de Melo não resistiu, um minuto de silêncio. Também eu me "curvo respeitosamente perante a memória de um lutador do diálogo, da paz e da democracia". Penso nele como um símbolo de todos aqueles que no mundo inteiro se dedicam à missão de servir a comunidade e o mundo onde foram colocados. Mesmo sabendo que não podem oferecer o paraíso terreal, bastam-se na ideia de que retardam a nossa descida aos infernos. 3. Anti-Herói. No minuto seguinte a esta minha homenagem ao homem esmagado, não por uma viga, mas por uma loucura cega, irracional e premeditada, dedico a atenção do meu pensamento ao meu anti-herói. O homem suicida que conduzia o camião- bomba. Quem era ele? O que o levou a este sanguinário acto? Poderei eu algum dia compreendê-lo sem o meu humanismo me levar a encontrar a minha própria desumanidade? Paradoxalmente, o encontro com o outro é feito de momentos que se contradizem. Primeiro, adquiro a consciência de que nunca poderei verdadeiramente entender o outro, este. O único instrumental de que disponho para isso é a cognição, já que a empatia a emprestei por inteiro a um herói que choro. E essa, a cognição, tem como matéria prima a minha experiência de vida. É esse não entendimento que me leva a uma radicalidade absoluta: aceitá-lo como um igual. 4. Desumanizados. Depois de o aceitar, a estupefacção. Como é possível alguém poder agir racionalmente no dispensar de uma razão que - seja qual seja a forma que adopte - será sempre uma procura do humano? O que poderá levar um homem a despojar-se da sua humanidade? O que teremos de fazer para nos rebelarmos contra esta desumanização do humano? Como poderá alguém que é tão humano quanto eu ausentar-se assim da sua própria condição? Vejo esse homem à minha imagem e semelhança. Sofro com a imposição de uma desumanidade que suspende qualquer tentativa minha de o compreender. 5. Violência. Porque adivinho, nesse homem, que vejo na exacta medida do humano, não é possivel que a violência venha apenas do seu eu. Nem preciso do mito de Rousseau sobre a natureza humana para sustentar esta minha convicção. Não há nenhum homem que se obrigue a ausentar-se do humano que em si habita, se a tal não for, violentamente , coagido. Violentamente. Não tenho relutância em subscrever a teoria de que este homem vive num edificio cultural e moral onde o valor dado ao martírio não são os do mundo em que me insiro. Mas não aceito, como acto de pensamento, suspeitar de que ele não é humano, de uma humanidade anterior ao que as religiões apregoam e ensinam. 6. Exclusão. O que faz um homem doutrinar-se num ódio tão cego e radical que nega aquela condição que o torna semelhante a nós próprios? A que exclusão terá sido sujeito para não o travar esta exclusão final a que, diante da nossa ideia de homem se sujeita (e já o disse, estamos num terreno de uma humanidade anterior ao lastro religioso e cultural que veste o homem desde o seu surgimento)? Que exclusão será essa que o leva a libertar-se através do grito hediondo de "Eu sou o Inumano!"? 7. O Inumano. Onde, como, quando, porquê, lhe foi dado ver o Inumano? Em nós próprios? Será que com o seu acto estava finalmente a colocar um ponto final numa ideia de exclusão que sempre o acompanhou e assim, a incluir-se numa inumanidade onde nos incluia? Será que assim ambicionava pertencer a uma ideia de humanidade onde nos situa ( mesmo que nela não no reconheçamos)? O seu acto não trará também a abjecção pela própria vida, pela própria humana condição? A genealogia do terror poderá vir em socorro desta ideia, dizendo-nos o quanto este suicída difere do snipper ou das células armadas agindo através do detonador externo? 8. O detonador. A questão do detonador. No artesanal do dispositivo, o homem-bomba constitui-se como pico dramático de um mundo possuido pela técnica. De uma desumanização do homem pela técnica. 9. Suícidio. A ideia de suícidio ter-se-á colado ao rosto deste Inumano por acaso? Porque não nos basta a palavra "kamikaze"? Receio dos neologismos? O reconhecimento tácito de que há uma ideia de cidadania neste incompreensível gesto? De que há algo que neste gesto, como em todos os suicidários actos, ficará sempre incompreendido? 10. Tráfico. Alguns vão dizer, chega de complexificar o simples. Estamos a falar apenas de homens utilizados por grupúsculos que se masturbam em orgias de terror. De negócio. De poder. Usando e usurando a fé, a religião, fanatizando-a através de um fundamentalismo cego. E terão razão, claro. Como eu terei também razões para persistir na ideia de que é possível encontrar o homem antes deste tráfico. E nem é preciso pensar que este homem sabia o que estava a fazer. Da forma como habitualmente dizemos que alguém tem consciência plena dos seus actos. 11. Auto-Determinação. Há nos seres, uma inteligência da coisa em si que não necessita da consciência para se determinar. Pensar é um acto solitário, solidário. O pensamento é uma acção que se dedica àqueles que, por mil e uma razões ou por nenhuma, não conseguem exercer-se em pensamento. 12. O primeiro tijolo do humano. Será preciso repetir que ver um ser humano no homem que se rebentou contra a sede da ONU no Iraque não é uma condição romântica, de condescendência compreensiva com o terrorismo, mas uma condição base para podermos aspirar à nossa própria humanidade? O ser que rebentou colocou-se a si mesmo no plano do inumano, do abjecto. Não haja dúvida alguma disso. Mas observá-lo aí, onde ele se colocou, desumaniza-nos também. 13. Tempo. Não me dedico, senão neste breve momento, a toda aquela hipocrisia reinante sobre o terrorismo. Acto abjecto, abjecção da vida, de uma ideia de vida que traveja o ser humano, independentemente dos credos, das religiões. Até aí estaremos todos de acordo. Arriscaria, na verdade tangível dos seus próprios actos, os homens bomba, vitimas dos seus suicidários actos, reforçam e comungam desta ideia do que se excluir. Mas pensar o terrorrismo não é colocar umas flores brancas na cabeça e expelir toda a arrogância que um ser humano, quando acossado pelo desespero e pelo pânico, é capaz de produzir. 13. A inteligência da coisa em si. Aparto-me da maioria de vós que insistis, generosa e ingenuamente, na tentativa de explicarem, racionalmente, o terrorrismo. Generosa, ingenuamente e, quero reconhecê-lo, corajosamente. Quando a linguagem que articula a razão se perde na mais vil usurpação, pela mentira e pela propaganda, é acto da maior bravata continuar a enveredá-la, acreditando na sua supermacia, não enquanto entretenimento, enquanto exegese das coisas e dos seres. Até porque - e se é chegada a hora do pessimismo invoquemos nele aquela força revolucionária que um dia lhe apontou Visconti - se é possível propangadear a mentira (e não estamos apenas no território do simulacro, da hiperealidade, mas no terreno da mentira mais sórdida, aquela que destrói a tenacidade e a energia do tecer democrático), por esse mesmo leito que a espalha por todos os lugares deste mundo, por esse mesmo leito poderá correr a verdade. 14. Respirar. Tenho para mim, no entanto, que à medida que o pensamento se evapora na sua tentativa de nos restituir a ideia das coisas, ele regressa, brutalmente, através da inteligência da coisa em si. E marcar encontro com a inteligência da coisa em si, talvez nos obrigue a abrir mão deste diálogo, deste consenso, deste acordo, e trilhar o incomum do trabalho artístico. Uma poética do confronto e da empatia num tempo e num espaço que é este sermos contemporâneos do mesmo ar. Não há nenhum entretenimento nisto. Uma arte que se ambicione em pensamento não nos entre-têm. É a solidão e a loucura, uma insana ideia de sermos, em respiração, que urge.

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