quinta-feira, outubro 02, 2003
Brasileira, no Chiado, quando faz vento e parece que chove mais...
Os meus amigos sabem, a maior parte dos telefonemas que lhes faço ocorrem entre a Rua do Carmo e a Rua Garret, até chegar à Brasileira, é lá que, quando posso, vou colocar um fim na tarde. Embalo na Calçada de Santana, desço ao Rossio, dou uma mirada no D. Maria II, rápida, a tempo somente de ver o branco restaurado da fachada, do negro que é a morte simbólica deste teatro não me aproximo sequer, atravesso a praça em diagonal, penso em como é bonita a cidade e lá ganho forças para a subida, íngreme, a Rua do Carmo custa mais, ao dobrar a esquina pressinto o Pessoa na sua imobilidade de ferro, é ele que me puxa durante o resto da ladeira.
Anteontem quando cheguei ao pé do poeta a chuva começou a cair. Primeiro os salpicos prenunciadores, depois, no engrossar da voz da água, a bátega impiedosa, vou para dentro, não gosto, evito, incomodam-me aqueles espelhos todos, mas hoje não há como fugir-lhe. Fico quase lá ao fundo, há uma mesa livre junto do corredor, é mesmo essa, se me apetecer fugir não incomodo ninguém, incomoda-me incomodar, sento-me, abro um caderno de apontamentos, tenho que escrever dois textos para a pré-selecção de um curso de documentário na Gulbenkian, só lá vou por tópicos, lá, ao texto, aquele ambiente fechado do interior da Brasileira oprime-me, o observador observado, a meu lado uma moça, escreve tópicos no seu bloco também, ainda estamos proxemicamente distintos, a minha mesa, uma mesa vazia, a sua, há espaço para todos.
A chuva traz uma enxurrada de turistas para dentro, à minha frente, aos lados, senta-se um casal de alemães, austríacos, não sei, há ainda uma rapariga que olha para a cadeira livre ao meu lado, estou cercado, a Brasileira parece um refeitório, desiste, respiro de alívio, fecho o bloco, vou engolir a meia de leite e a torrada e pirar-me daqui, a moça ao meu lado levanta-se, sai, o casal à minha frente organiza-se e encosta-se ao lado, ganho pelo menos, como dizem os metereologistas, superfície frontal, talvez dê para despachar agora os tópicos do texto, quando chegar a casa escrevo o resto na bisga. A rapariga volta para trás, a chuva, a chuva, chove mais, o único lugar é mesmo à minha frente, a tal superfície frontal, faço o gesto de anuência, ela senta-se, estamos quase com o nariz em cima um do outro e nem nos conhecemos, o meu bloco de apontamentos é um caderno grande, rouba o espaço quase todo, encolho-o, agora continuar a escrever o texto é uma questão de dignidade, faço um derradeiro esforço, não dá, fecho o bloco:
- Não consigo. Não consigo escrever aqui.
Noélia, é assim que, mais à frente, descobrirei, se chama, encolhe os ombros, como se dissesse, não escrevas, veio de Faro aqui ver a Experimenta, cinéfila, abre os olhos de simpatia quando lhe digo que ando às turras com um texto para um curso de documentarismo, ela é designer, de interiores, eu também, as pessoas são como casas, as casas são como pessoas, não é uma teoria, é uma frase, uma daquelas frases que se dizem, já foi há muito tempo, não me ocorrem os promenores, volto à Noélia, a essa revelação que me deixou meio lerdo:
- Não, não sei o que são os blogues...
Olho-a com desconfiança, ainda penso que é um holograma, prescruto alguma câmara escondida, oculta, talvez seja para um daqueles programas de apanhados, tem talvez vinte a trinta anos, sabe o que é a internet, usa-a, trabalha até em sites, não conhece o que é um blogue, a certa altura descubro que ela me olha de um modo estranho, como se inquirisse se de facto o holograma não seria eu.
- Sou muito crítica da utilização da internet... - diz-me, desfazendo todas as dúvidas, somos ambos reais, por dentro e por fora, arquitectos de interiores, cada um a seu modo, a conversa segue então como sempre se fizeram as conversas, com palavras atadas num cordelinho de nós entrelaçados, nem tentei falar-lhe do fascínio por este admirável novo mundo dos blogues, lá fora chove, chove mais, será a chuva, como coisa de fora, exterior, parte desse velho mundo a que, felizmente, ainda pertence ao nosso viver, a marcar, como um compasso, a duração deste breve e inesperado encontro.
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