quinta-feira, outubro 02, 2003

TAXI DRIVER - Sua Excelência, a Crise

[ Há uns tempos desafiaram-me para escrever um episódio piloto para um programa de humor, um humor próximo dos jogos de absurdo. O formato estava definido, faltava o texto. O personagem também não era este, mas eu, dada a minha devoção pelos táxis, fi-lo taxista. A coisa terá encalhado, entretanto. Hoje, ao olhar o texto, depois de o rever, apeteceu-me salvá-lo da escuridão. Como há uns tempos tinha pensado em criar aqui Taxi Driver, uma galeria de personagens a partir de retratos vivos de taxistas (na cidade, sou um utilizador incondicional deste meio de transporte), abro assim Taxi Driver, com um retrato totalmente ficcionado. Ficção, dizes tu..."] Apresentador Boa noite. Bem vindos a "O Poder está na Rua”. Temos hoje connosco Alfredo Mandavir, um homem que nasceu predestinado para guiar os destinos do país. Taxista de profissão, foi no pára arranca da capital que começou a criar as suas ideias e soluções para conduzir Portugal. A sua filosofia, toda ela marcada pelo desespero das horas de ponta, pretende ser uma valente buzinadela na actividade política portuguesa. Vamos abrir então o sinal verde para Alfredo Mandavir. (Momento de Silêncio. Alfredo fica calado. Tira a boina, pousa-a em cima da mesa. Olha para um lado e para o outro. O apresentador fica embaraçado) Senhor Alfredo Mandavir, queremos ouvir as suas ideias. Alfredo Mandavir As minhas ideias? Quais minhas ideias? Eu não tenho ideias nenhumas. Apresentador (Cada vez mais embaraçado) Mas Sr. Alfredo Mandavir...Queremos ouvi-lo apresentar as suas ideias...as suas soluções... Alfredo Mandavir Eu não venho aqui fazer fretes. . Agora ia-me pôr a apresentar soluções só porque você quer?! Era o que faltava! Sou um homem com responsabilidades. Nós não precisamos de soluções para nada. O que nós precisamos, o que nós precisamos... ouça bem...o que nós precisamos é de problemas. Eu sempre defendi isso. É a minha teoria. Apresentador (Encontrando uma tábua de salvação) Isso, isso. Fale-nos da sua teoria. Alfredo Mandavir Já podia ter dito. É muito simples. Os problemas são a base de tudo. Sem problemas não há soluções. Mas os problemas sobrevivem às soluções. Olhe a morte, por exemplo. Tem solução? Tem solução? Diga? A morte tem solução? Hã? Diga? Nunca tinha pensado nisso, pois não? Apresentador (Interrompendo) Explique um pouco melhor a sua teoria, por favor... Alfredo Mandavir Os problemas são o húmus da vida. Essa é que é essa. Eu sempre defendi isso. É a minha teoria. A primeira tarefa a fazer é encontrar um conjunto de problemas sérios, graves. Os chamados sarilhos. Ou os codilhos, como dizia o meu tio. Depois, se conseguirmos muitos codilhos, assim todos entrelaçados uns nos outros, podemos mesmo chegar a criar uma crise. Apresentador Uma crise? Vai haver crise, senhor Alfredo Mandavir? Alfredo Mandavir Eu não disse isso. Sou um político realista, um homem com responsabilidades. Não posso prometer nada. Não se arranja uma crise assim do pé para a mão. É uma meta muito ambiciosa. Uma espécie de lotaria. Um trevo de quatro folhas. Mas é uma meta, é um sonho. Uma ambição. Nós, sem ambição não chegamos a lado nenhum. Apresentador Quer dizer que para si a crise é a grande meta? Alfredo Mandavir Tirou-me as palavras da boca. Os meus adversários não percebem nada disto. Têm medo. Eu não pactuo com isso. Eu estou aqui para olhar os meus compadres nos olhos e dizer-lhes a verdade. Apresentador Pretende então levar a inquietação e a preocupação a todos os lares deste país? Alfredo Mandavir Sem tirar nem pôr. A verdade nua e crua é que o Zé, o Zé Povinho contenta-se com pouco. Não enxerga um palmo à frente do nariz. É triste dizer isso, mas essa é que é essa. Para o Zé está tudo bem. Enfia a cabeça no chão e pensa que se safa com o “Podia ser pior. Vai-se andando!”. O Zé não quer fazer má figura ao pé dos amigos, dos vizinhos, da família. Os meus adversários ainda não perceberam isto. Falam todos com a boca cheia de números, engasgam-se com os por centos disto e daquilo. Quais por centos qual carapuça, o que nós precisamos é de problemas. Apresentador É uma estratégia de alto risco... Alfredo Mandavir (bebe um copo de água. Limpa os beiços com a camisola) Eu sou um homem de rupturas. Pão, pão, queijo, queijo. Problemas. Problemas a sério. Daqueles que fazem sangue. Que tiram o sono. Que dão tremuras e palpitações a meio da noite. Apresentador A meio da noite? Alfredo Mandavir Ora aí está outra coisa que eu mudava. Os meus adversários fazem fila para entrarem a abrir os telejornais das oito. Nem jantam se for preciso. E sabe porque é que isso acontece? Não sabem nada sobre o povo. Não conhecem o Zé! Pensam que ele chega a casa às seis e meia e que têm uma criada para pôr o jantar na mesa às oito. Nada disso. O autêntico homem da rua chega a casa a bater com as nove. Vem carregado com a mulher e os filhos. Só lá para as dez é que está despachado. É isto a realidade da vida. Apresentador E então como irá fazer para divulgar as suas políticas? Alfredo Mandavir Comigo os problemas são anunciados ali entre a meia noite e a uma da manhã. Entre a meia noite e a uma da manhã. Quando o Zé já foi escovar os dentes ou a placa e se prepara para se enfiar no vale dos lençóis. Aí ele fica KO. Passa a noite a remexer-se. A virar-se de um lado para o outro. A destapar a Maria. A dar-lhe pontapés. A levantar-se da cama para ir fumar um cigarro à janela . E se a coisa for bem feita, noite após noite, uma a seguir à outra, ao fim de umas duas semanas, o coitado do Zé está de rastos, à mercê das nossas ideias, das nossas soluções. Apresentador Então sempre tem ideias, soluções. Alfredo Mandavir (pausa. António olha para ele incrédulo)Você não percebeu nada do que eu disse, pois não? Ideias, qualquer idiota as tem. Problemas, não. O grande desafio é conseguirmo-nos mobilizar todos à procura de problemas. Se nos sentarmos à sombra da bananeira à espera que os problemas nos caiam do céu não vamos lá. Temos de andar à cata deles. Sempre. Novos problemas. Problemas sempre cada vez mais complicados. É importante que consigamos complicar tudo. Apresentador Mas depois precisa de ter soluções, ideias para resolver os problemas? Alfredo Mandavir Isso é você que o diz. Não ponha palavras na minha boca. Eu falo por mim, pela minha experiência de vida. Sou um político responsável. Se já temos os problemas para que é que precisamos de soluções? Apresentador Mas então nunca vai resolver nada? Alfredo Mandavir (tom de gozo) Convença-se disso, as soluções só atrapalham, só servem para resolver problemas. O que precisamos é de um grande esforço nacional para não cairmos em falsas soluções. Chega de falsos profetas. Para não cairmos no facilitismo. Basta de pensarmos que temos soluções para os problemas. Eu acredito no patriotismo das pessoas. Eu acredito que as pessoas sabem distinguir claramente entre quem tem soluções e quem tem problemas. Apresentador E não tem medo que as pessoas se virem contra si? Afinal vai complicar-lhes a vida? Alfredo Mandavir Já ouviu o povo? Lá no fundo o povo não acredita que os políticos resolvam alguma coisa. É por isso que um político, um verdadeiro político não deve ir contra as convicções mais profundas das pessoas. Os grandes problemas são o alibi perfeito para os grandes políticos. Ninguém gosta de quem passa a vida a resolver problemas. Há lugar para esses, claro, nas obras de caridade e misericórdia, nas repartições públicas, nos escuteiros, mas não na condução dos destinos do país. Durante a tempestade, o que o povo quer é esperança. Apresentador Diz o povo, “Depois da tempestade vem a bonança”. Alfredo Mandavir Ora nem mais. Por isso é que é necessário criar sempre novos problemas. Uma roda imparável de problemas a girarem, a girarem sem parar. Uma roda gigante que nos leve ao sonho, que nos restitua o optimismo, a fantasia, a esperança. Os portugueses sabem que podem contar comigo. O meu lema é “Dêem-me uma solução, eu arranjo um problema!”. Um novo problema, cada vez mais difícil. É preciso manter a candeia acesa. A luz ao fim do túnel. E um dia, se os ventos estiverem de feição nesta borrasca que é a única coisa que em consciência posso prometer, virá a crise. A crise em todo o seu esplendor. Como se fosse uma aparição. Uma luz branca, a estremecer, que atravessa os céus e cai em cima da oliveira. Como um raio. Apresentador E então, nessa altura, quando a crise chegar, o que é que faz? Alfredo Mandavir O que é que eu faço? Homessa! Recebo-a com todas as honras protocolores. Passadeira vermelha, claro. É uma questão diplomática, de Estado. Não se pode tratar uma crise a pontapé. Ela é que manda. Ela é que diz a que horas nos levantamos e deitamos, o que produzimos ou não produzimos, o que comemos ou não comemos. Ela é que manda. Ela é que põe e dispõe. Ela é que diz se casamos ou se nos descasamos, se ficamos aqui ou se emigramos, se os miúdos continuam a estudar ou se vão trabalhar, se vamos de férias para o Algarve ou se nos trancamos em casa à espera do Outono, se mudamos de carro ou compramos o passe da Carris. Ela é que manda. Com ela andamos todos a toque de caixa. Apresentador Então a crise é que vai governar o país? Alfredo Mandavir Claro. É por isso que as crises são boas. São como uma mãe. Tratam de nós com carinho. Estendem os seus braços para nos acalmar com a mesma naturalidade com que nos põem no quarto de castigo ou nos dão uns sopapos bem dados. Com as mães não se discute, obedece-se. É por isso que eu digo, é preciso sentir o pulsar deste povo. Se você andasse no meio da rua, ali entre o povo, o autêntico povo, percebia que as pessoas andam tristes, andam sem esperança, sem ânimo. Como se fossem órfãs. Falta-lhes uma mãe. Uma crise. Uma crise é como uma mãe. Essa é que é essa!

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