segunda-feira, março 22, 2004

Para que servimos nós?

Foi no outro dia, no final de um ensaio do Grupo de Teatro da Escola de Enfermagem Calouste Gulbenkian. O Ricardo tinha chegado atrasado. Tinha vindo de fazer tarde, durante o estágio. E nem era bem isso. Ele não chegou atrasado. O tempo é uma convenção. O que se passou é que ele não conseguiu largar o terrível momento em que descobrira que a doente que ele andava a acompanhar morrera. Já não carecia do seu cuidado. O problema é que no dia anterior o Ricardo tivera que aplicar um conjunto de técnicas novas, novas para um estagiário e nem sequer pudera olhar para a senhora. Claro que estava bem escudado nas orientações docentes mas a sua alma de discente era bem mais exigente. Enfiava os olhos no chão e queria que todos lhe déssemos uma resposta. Ela começou a chegar, todos nós adoramos o Ricardo, mas eu pressentindo que ali estava mais uma auto compaixão com esboço corporativo, fiz de advogado de diabo: - Não sei se vocês estão com pena do Ricardo ou de vocês mesmos. - Ouve-se um coro fortissimo de rejeição da minha provocação que, assim, funcionou em pleno. Insisti.- Todos nós sabemos que ele aguenta bem a pergunta se poderia ter ou não feito mais alguma coisa. Não se se vai desmoronar. Nem liquefazer. Muito menos, evaporar. Então porque é que ele não há-de perguntar se não poderia ter feito mais alguma coisa? Independentemente do grau de dificuldade das técnicas e da sua atenção ao professor, estava ali uma pessoa e ele não podia gastar um segundo a olhar para ela? E essa pessoa que não existe já senão na nossa memória e no proveito que podemos tirar sobre a nossa atitude para com ele, não deverá servir pelo menos para vos ajudar a serem melhores enfermeiros? E alguém tem dúvidas de que ele será tanto melhor profissional quanto souber ser provocado, interpelado, por estas dúvidas que o assaltam?

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