quarta-feira, agosto 18, 2004
Escritor de Posts
Apetece-me pensar e isso demora. Talvez este post vá ser um pouco mais longo do que o tempo que eu estou preparado para escrevê-lo. A ser assim alguém terá de ser vencido pelo cansaço, eu ou ele.
. Há pessoas, eu sei, tu disseste-me, que nunca se atreveriam a escrever se soubessem que era mesmo isso, escrever, que faziam. Dão outros nomes há escrita que têm entre os dedos mas isso não importa. O que importa é que escrevam. Que escrevam, que escrevem e que o façam assim, admiravelmente. Como se ao deixarem cair a última gota de tinta no ecrán o stock das palavras sobre a terra se esgotasse por momentos e a escrita, num estrebuchar de alegria, por momentos estremecesse de renovo. E por isso, mais ou menos veladamente, que as admiramos. Eu admiro-as. Te. Não passo daí por pudor, mas à admiração afianço-me sem algum enrubescimento.
. Mas não é de pessoas nem de escrita que quero falar. Quero falar de nós aqui. E isso tem de ter algures, uma tela branca, anterior às pessoas, à escrita. Tem de ser no lugar onde se discute a liberdade. No lugar onde se enuncia o tempo de nos apercebermos que as coisas sobrevivem à nossa dor, à nossa passagem por elas. As coisas sobrevivem-nos e só temos, para as suster, esta incrédula capacidade de nos exprimirmos. E exprimimo-nos assim contra, contra os deuses, contra os que de nós se outorgam em deuses, contra os que de nós se planeiam ao serviço espúrio e proxeneta e campónio de todos os deuses, contra todos aqueles cabrões de vindouros e mais do que isso, porque se fora assim nem a própria escrita sobreviveria à sua esterilidade, exprimirmo-nos assim por, por um homem novo, um homem ou uma mulher novos, de uma cor inaudita, feroz, simultaneamente o último grave e o derradeiro agudo do som, do mavioso som, daquela tessitura que nos esfrangalha. A escrita só existe porque no fora do dentro de nós alguém, ao compor-nos, colocou lá, talvez inadvertidamente, provavelmente contrabandeando, umas gramas, poucas, de sublime e desde aí vimos sofrendo de uma dor que é maior do que aquilo que nos é possível viver. Por isso nós, o homem e a mulher, o humano, se desdobra em cantos, em poemas, em harmonias, em pixels e personagens, em cores, dimensões, em estados que vão onde a criatura não pode ir.
. Não tem sentido discutir a nossa presença aqui fora da aventura da expressão. Tive o privilégio de assistir a diversos momentos em que a expressão nasce. Acode a uma boca, a um olhar, a um corpo. Não há nada que se lhe compare. No breve deste assomo vemos claramente senão a divindade, o porquê da sua proximidade à história humana. É como se um corpo fosse feito de cordas dedilhadas magistralmente. É claro que tudo isto que escrevo poderá parecer algo sedutor mas não é, estou já a ver lá ao fundo alguém a levantar o dedo exprimindo a sua objecção, isto não é pensamento. Talvez não seja.
. Giles Lipotevski escrevia na sua Era do Vazio contra ou sobre o mundo de narciso que na sua exponenciação absoluta iria fazer com que cada um fosse expressão e riso de si mesmo e que nada escutasse nada. Infelizmente Lipotevski, que nos ajudou a compreender a condição pós moderna, não podia prever a blogosfera. E porque não podia prevê-la não a pensou. Ora se nem ele a conseguiu pensar, o que isto quer dizer é que a blogosfera surgiu de remanso, na surpresa, no imprevisto. Ou então ela surgiu como contradança ao pessimismo pós moderno.
. O que é facto é que surgiu e que assim, milhares de pessoas em todo o mundo escrevem mais. Não apenas nos sms, nas mensagens truncadas no chats, nos icqs, nos messengers, também nos blogs. Meus amigos, isto não é o DN Jovem. Isto não é um espaço passerele para outros lados, fazer transvazes, editar livros, ser chamados para programas de televisão, de rádio. Pode servir para isso, e que te aproveite, mas é uma outra coisa. O ser, cada um de nós, à porta da sua edição acede à expressão e através dela está mais próximo do outro que em si habita, e também, do mesmo que se reconhece no outro, outro que não ele.
. O que nós estamos a construir e devemos continuar a fazê-lo com a mesma imprudência com que o fazemos agora, talvez mais, agora já sabemos que não é outro este lugar, é aqui que estamos, que habitamos e que nos revelamos, o que nós estamos a construir é um homem novo. Talvez sejemos no futuro um pouco menos Hemingways, Steinbecks, Faulkners - mas poderemos também vir a descobrir que muita da sua grandeza é o tempo da nossa admiração por eles - mas seremos mais pródigos, mais humanos, mais próximos, mais críticos, e sobretudo, mais amáveis. Porque o ser que resulta da expressão é um ser de uma amabilidade e de uma doçura reforçada.
. Porque o ser que resulta da expressão é um ser de uma amabilidade e de uma doçura reforçada. Termino assim, numa espécie de empate técnico entre mim e este post. Agora que ele estava a dar sinais de vencido, chegou subitamente a hora de, exausto, nele me derrotar. Voltarei ao assunto, espero. Mas na inconfessa esperança de que te inspire, que fique desde já aqui assinalada a minha fé - agora gostava de escrever inquebrantável, era uma minha expressão fetiche, não posso, as fés, todas elas, quebram-se com o uso, desgastam-se, encarquilham-se, as minhas chegam mesmo a desbotar- dizia, a minha fé na aventura da expressão enquanto experiência de liberdade, de vida.
(continua)
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3 comentários:
Joaquim, pus um link no(s) meu(s) blog(ues) para este texto. Gostei mesmo dele, e vou ficar à espera da continuação.
Que bom saber-te aí, Ferran.
Estou, estou. Caladinho, mas estou.
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