terça-feira, setembro 21, 2004

Grafia no género (1)

As mãos levam o aparo ao rosto taciturno do papel e logo ali começam a desenvolver uma estranha dança. Comecei a separar o mundo de acordo com a maior ou menor desenvolvura com que os sujeitos - é uma utopia minha, sei, sentir em cada manápula que escreve a evidência de um sujeito - evoluem na grafia. A escrita tinha três géneros*. A dos homens, e aí em primeiro lugar vinha a do meu pai, os caracteres tinham-se desvanecido, como se apagassem o rasto, não consigo reproduzir, imagine-se um gráfico, uma linha que sobe, desce, ligeiramente encurvada sobe, desce, sobe, a direito, inclina-se vertical, sobre o subsolo da linha imaginária onde o nome se escreve, ganha assim impulso para subir, como numa montanha russa, ao chegar lá a cima um ligeiro desiquilibrio faz com que deixe uma ponta, presumo ser o i de domingos, e quando desce a meio termina num ligero ondular. Esta grafia tinha tudo a ver com a ocultação e sabendo do meu pai o seu segredo, sempre associei o masculino do mundo como um universo fechado na sua gruta, na sua cova de granito, do não poder falar, contar, voltar atrás. Milhões de nãos. O mundo no masculino é um mundo triste. Aliás, é melhor dizê-lo, é triste a nossa forma de poisarmos no mundo dos géneros . Não tenho certezas sobre isso. É provavel que sem os géneros, Eros não nos habitaria e, mais até, despovoaria toda a nossa vida de algum encanto. Mas uma coisa é os géneros, outra a forma como os vivemos. Poderemos até fazer jurisprudência sobre o assunto, na medida em que sabemos que a forma como tendemos a viver as coisas, e as ideias são coisas, repito, levam-nos a afastarmo-nos delas. Lembro-me de no outro dia ter pensado nisso quando vi um cartaz censurado no S. João. Ainda há pouco eu ia cair na mesma rasteira, escrevi: o mundo dos géneros é um mundo triste. E não é, claro, emendei: a forma como nós vivemos o mundo dos géneros é que é triste. E digo isto agora uma outra vez mas já depois de ter dito que a mim isso não me confunde: a forma triste como nós vivemos os assuntos do género leva-nos a tornar o género uma coisa triste. Não o é intrinsecamente. Mas é por ele ser tão extrinsecamente triste que grande parte da fadiga do mundo é embelezá-lo, adorná-lo. O que consegue amiúde. O glamour compensa e nem quero pensar no que seria da vida sem ti. Mas a verdade é que às vezes penso que só não sou homossexual por acaso. Ou porque o meu irmão se antecipou e eu, embora o ame, nunca seria capaz de o seguir. O que é uma grande graça desse deus em que não creio, mesmo com este desprezo por uma masculinidade que tem de se afirmar pifiamente para poder ser, a verdade é que nunca me conseguiria imaginar a beijar um homem. Muito menos a ser sodomizado. É verdade, pouco conheço da sodomia. Descobri tardiamente o prazer das mãos sobre o ofegar dos quadris. E parece-me assim soberbo o gesto que não vê o rosto amante. Embora também o confesse, é nesse momento que se assoma à face, ao rosto, toda a narrativa de uma fêmea. Nunca conheceremos uma mulher enquanto não virmos a forma e as linhas da sua face copulante. ___________ * o principio dos textos e a forma como eles se escrevem é qualquer coisa de espantoso. comecei este texto a propósito da invocação do avó da inconformada e lembrei-me assim do meu, do meu avô, senhor de escrita redonda, muito certinha. hei-de ainda lá chegar ao avô Figueira.

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