sexta-feira, outubro 29, 2004

Ainda A Cabra ou Quem é Silvía?

Ou o lugar da comunicação na miséria e no sofrimento humano No outro dia escrevi aqui que havia uma dimensão totalitária da comunicação. A propósito de "A Cabra ou Quem é Silvia?", é do mesmo - mas já não como asserção, não como axioma, sim como exposição da miséria e do sofrimento humano - que Edward Albee nos fala nesta última peça que a Comuna estreou ontem. É que vimos a compreeender mais tarde, Martin, o arquitecto, transportava dentro de si este drama de não ter nunca conseguido verbalizar - junto daqueles que lhe eram mais próximos e até consigo mesmo -o ter-se apaixonado por uma cabra. Junto da sua familia ideal, nomeadamente o seu filho e a sua mulher. Junto do seu amigo de sempre. Tinha andado em grupos de encontro, onde vozes anónimas falavam das suas vidas enroscadas com animais. É aliás um momento muito especial da peça, aquele em que ele, falando dos vários companheiros do seu grupo, desvenda à sua mulher o sofrimento com o qual conviveu durante tanto tempo. E a tragédia só acontece quando é traduzida. Temos até a sensação de que ela nunca seria trágica, apenas bizarra, senão tivesse sido traduzida daquela forma. A cena da tradução é magistral. O amigo do arquitecto, a propósito do seu aniversário, vem entrevistá-lo para um programa de televisão. Encontra-o estranho, desafectado, longínquo. Obriga-o, em nome da amizade a ser sincero. Martin a contragosto fala de algo, assim de forma indefenida. Fala de um passeio pelo campo, onde a encontrou. Descreve de forma pura e sensível o encontro. O outro, numa linguagem vernácula fortissima, reduz todo aquele universo. Quer assim saber qual é a gaja que o seu amigo anda a foder. Ele mostra-lhe a fotografia. É de Silvia, uma cabra. E de repente a fórmula "Tu andas a foder uma cabra!" é a única expressão sobre o ocorrido que, como um jogo, passa da boca do amigo para a da mulher e do filho de Martin. Reiterada e dolorosamente repetida. O texto na sua concisão fundamental não se poupa ao verbo para nos dar conta do jorro latejante de cada um dos personagens e é isso também que leva todos os actores para uma interpretação fabulosa (tive eu a poupar nos adjectivos para isto!). "Andar a foder uma cabra!" é a única forma que a sua família de sempre tem para se relacionar com a monstruosidade que pressente naquele amor. Todos nós percebemos que ele nunca "fodeu" com a cabra. Que o que sente é dentro dele, um lampejo interior. Alto tão pueril que até é perturbante, como se pode amar assim, tão desinteressadamente. Que nunca o soube exprimir. Até que o amigo o acusou de andar a foder uma cabra. E então ele aí levanta-se e diz, cândido, condescendente, "é isso, ando a fodê-la!", e sentimos-lhe quase que um alívio. É afinal tão fácil explicar as coisas, descobre. E parece que todos assim o entendem. É a dimensão trágica desta aventura totalitária da comunicação. O homem oferece-se a ser apedrejado, banido, destruido, a ver tudo à sua volta, a mulher, o filho, a própria cabra serem mortos - pelo menos mortos uns para os outros - para poder ser decifrado. Não o entendem, não o compreendem, mas conseguem decifrá-lo. Traduzi-lo: "O meu pai anda a foder uma cabra!", "Pensar que depois de a foderes vens para a minha cama...", "Se tivesses uma amante, se....mas isso, o que tu fizeste á tua mulher, ao teu filho...". Naquele momento em que é apedrejado, rasurado, expulso da sua ideia de casa, da sua ideia de pertença a uma família, ele corta com aquela solidão insuportável. A do convívio com a ideia de horror que o invadira ao perceber que amava uma cabra. Edward Albee diz que a peça tenta debruçar-se sobre os limites " da nossa tolerância, sobre aquilo que nos permitimos a nós próprios pensar". Mas Albee vai mais longe, ele questiona o papel da comunicação para a construção deste limite, desta cerca, deste pensamento blindado. Não se trata de associar o proscrito ao não dito, como sempre detectámos nas formas de censura, de condicionamento social. A ideia de liberdade de expressão ganha aliás muito da sua força nessa ideia de resgate ao que não se pode dizer. Não dito que é também, assim, o não pensado. Não, aqui estamos num outro momento da miséria e do sofrimento humano. Aquele em que os personagens usam a comunicação para blindarem o mundo à sua possível crítica e interpelação. É um lugar tão deste mundo que se torna dificil reconhecê-lo. E a questão é essa mesma: onde inventaremos uma linguagem que nos permita devolver o homem ao encontro consigo e com o outro, já que a comunicação através da nossa linguagem não parece ter mais forças para cumprir essa função? É preciso escavar um silêncio profundo na nossa linguagem.

2 comentários:

Anónimo disse...

Tenho acompanhado o seu respirar. Tenho observado uma progressão, um aperfeiçoamento, uma luminosidade maior nos seus textos. Este é muito interessante. Mas não se trata de inventar linguagem, ela reinventa-se no seu processo evolutivo, é ela que evita o colapso neste mundo cheio de complexidades.
O que andam a fazer aqui todos estes blogs?
Gosto muito do que escreve.

JPN disse...

O que andam a fazer aqui todos estes blogues? Excelente questão. Subentendido: Porque andam aqui? Entre nós é fácil entendermos quase que a indispensabilidade da "coisa". Mas basta que alguém no de fora dos blogues se acerque e pergunte, porquê?, e o quê?, que se torna mais dificil responder. E fascinante, claro.