sexta-feira, outubro 01, 2004

Viver todos os dias cansa

De manhã, manhãzinha, quando o sol tinha acabado de treinar no outro hemisfério o prateado que começava a dar ao Tejo, ela subia a Calçada dos Barbadinhos com um saco cheio de lágrimas. Costumava vê-la da varanda que será sempre a minha preferida porque foi a primeira a dar-se a todos os devaneios de independência, de identidade firmada no ferro velho-verde a ameaçar colapso. Anunciado mas nunca concretizado. Aqui onde me tinha conseguia vê-la com as pernas inchadas do sono-mal dormido-da subida-da descida-das ausências-da revolta- e enternecia-me com a sua persistência. Parecia que há 80 anos - a sua idade mal medida naquelas manhãs com brisa de ressaca e cansaço que eu tanto saboreava - subia e descia aquela calçada. Para quem não a conhece, a mais desesperada de todas em diluir-se no rio de Lisboa, sem preocupações de limite de desnível máximo a respeitar. Nessa inclinação jogavam-se duas teimosias: a dela, em vencer a força que a puxava para baixo e que as duas toscas muletas pareciam ser incapazes de conter; a minha, em vencer o sono que me afastaria deste amanhecer criminoso, reservado aos que entram na escuridão e dela saem com os olhos bem abertos. No saco levava lágrimas que tentaria entregar na Farmácia da Senhora do Monte como se fossem remédios fora do prazo. Voltaria pelo mesmo caminho quando lhe respondessem que o Governo não tinha renovado a licença para a reciclagem de materiais cristalinos. Nunca a cumprimentei, sustinha a respiração para não dar pela minha presença, dois andares mal medidos acima da sua cabeça branca, a saia sempre impecável de xadrez: e ficávamos os três, eu-ela-o cigarro a vencer os paralelepípedos que a separavam do topo do mundo. Adormecia sempre, nessas manhãs, com um sorriso cheio de liberdade.

2 comentários:

JPN disse...

é o begin da invasão celta...

inconformada disse...

Belíssima imagem. Nem tenho mais palavras :-)