No outro dia, em cima do papel de mesa de um restaurante indiano, entre duas ou três nódoas daquele molho agridoce que eu não consigo tragar e o espaço livre entre dois copos de vinho, explicaram-me a doutrina epicurista. Gostei particularmente de saber que a amizade ocupava o seu lugar nos prazeres naturais e necessários. Essa ideia de necessidade advém de que o homem é um ser feito para partilhar a sua verdade. Como me soube bem, entalada com pão de alho regada com um tinto escorreito, esta explanação quase infantil do epicurismo.
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Um único senão. A paixão não é necessária. Ou, como dizia há muito o
Luís, é um
coma da razão. Não aceito, eu que a tenho como bem de primeira necessidade. Poderemos aliás privar-nos de quase tudo. Basta misturarmos um pouco de Epicuro com Buda e Confúcio. Talvez Cristo. Ou João Baptista no deserto. Mas da paixão nunca saberemos como privarmo-nos. A paixão é uma inclinação dos seres e neste inclinar há um recurvar humilde de alguém abdicando de si, reencontrando-se no outro. Deixemo-nos de coisas. O homem constrói a sua identidade não no espelho, mas no
outro onde se espelha. O homem é em acção e
é aí, no seu espanto. O amante descobre-se na coisa amada e perturba-se e é aí um ser que dança, que se inquieta, inquietante. Este jogo da paixão há-de durar o tempo que for necessário para que o amante volte a entrar em casa, na sua própria casa. Dizemos então que ele subiu ao pavilhão iluminado do amor. É uma forma de dizer as coisas mas tão somente, uma maneira de dizer as coisas. Ele não subiu a lado algum e essa destrinça entre paixão e amor é ridícula.
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Não é por aí que descobriremos a santidade que é possível encontrar no amor. O homem vive em estado permanente de paixão. De inclinação pelas coisas, pelos seres. Pelo par do seu olhar, pelo duplo do seu gesto, pelo verso da sua mão. O que acontece é que este homem inclinado também tem a sua hora e nessa, reencontra-se consigo mesmo. Só aí termina verdadeiramente a sua viagem de homem apaixonado. Quando só, abandonado a si mesmo, se dirige à estante, à secretária, à gaveta dos cds, ao forno, e de alguma forma percorre outra vez, na memória, o trajecto da paixão e do enamoramento.
2 comentários:
"O homem vive em estado permanente de paixão". Acabemos com o homem! e usemos as pessoas, a humanidade, nós, tu e eu e todos os outros, a malta toda que cá anda, etc...
Outra coisa, parece-me cada vez mais que a malta anda é em estado permanente de... tudo menos paixão. É tão raro ver-se aquele fogo entusiasmado... Até os mais novos já adoptaram uma certa atitude blasé, cool, estilo "ya, não importa..." Se ao menos fosse Zen a sério, mas não, é mesmo ignorância/medo do sentir intenso.
Éclair
Quando só cansado destes mergulhos o homem olha os seus membros e entrevê a sua utilidade. É uma forma de vida essa a da paixão, a mais próxima dos movimentos naturais do homem. É como seria sem grilhões, sem séculos de história, sem a promiscuidade de prédios altos. Só podemos entender o epicurismo sem a tragédia, sem o limite, sem a falência de valores. Paixão precisa-se. Vivi poucos anos e quando ouço os que tais "relax, é na boa", uma náusea preenche-me. É mesmo medo.
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