quinta-feira, janeiro 20, 2005

De Rerum Natura

No outro dia, em cima do papel de mesa de um restaurante indiano, entre duas ou três nódoas daquele molho agridoce que eu não consigo tragar e o espaço livre entre dois copos de vinho, explicaram-me a doutrina epicurista. Gostei particularmente de saber que a amizade ocupava o seu lugar nos prazeres naturais e necessários. Essa ideia de necessidade advém de que o homem é um ser feito para partilhar a sua verdade. Como me soube bem, entalada com pão de alho regada com um tinto escorreito, esta explanação quase infantil do epicurismo. Um único senão. A paixão não é necessária. Ou, como dizia há muito o Luís, é um coma da razão. Não aceito, eu que a tenho como bem de primeira necessidade. Poderemos aliás privar-nos de quase tudo. Basta misturarmos um pouco de Epicuro com Buda e Confúcio. Talvez Cristo. Ou João Baptista no deserto. Mas da paixão nunca saberemos como privarmo-nos. A paixão é uma inclinação dos seres e neste inclinar há um recurvar humilde de alguém abdicando de si, reencontrando-se no outro. Deixemo-nos de coisas. O homem constrói a sua identidade não no espelho, mas no outro onde se espelha. O homem é em acção e é aí, no seu espanto. O amante descobre-se na coisa amada e perturba-se e é aí um ser que dança, que se inquieta, inquietante. Este jogo da paixão há-de durar o tempo que for necessário para que o amante volte a entrar em casa, na sua própria casa. Dizemos então que ele subiu ao pavilhão iluminado do amor. É uma forma de dizer as coisas mas tão somente, uma maneira de dizer as coisas. Ele não subiu a lado algum e essa destrinça entre paixão e amor é ridícula. Não é por aí que descobriremos a santidade que é possível encontrar no amor. O homem vive em estado permanente de paixão. De inclinação pelas coisas, pelos seres. Pelo par do seu olhar, pelo duplo do seu gesto, pelo verso da sua mão. O que acontece é que este homem inclinado também tem a sua hora e nessa, reencontra-se consigo mesmo. Só aí termina verdadeiramente a sua viagem de homem apaixonado. Quando só, abandonado a si mesmo, se dirige à estante, à secretária, à gaveta dos cds, ao forno, e de alguma forma percorre outra vez, na memória, o trajecto da paixão e do enamoramento.

2 comentários:

Anónimo disse...

"O homem vive em estado permanente de paixão". Acabemos com o homem! e usemos as pessoas, a humanidade, nós, tu e eu e todos os outros, a malta toda que cá anda, etc...
Outra coisa, parece-me cada vez mais que a malta anda é em estado permanente de... tudo menos paixão. É tão raro ver-se aquele fogo entusiasmado... Até os mais novos já adoptaram uma certa atitude blasé, cool, estilo "ya, não importa..." Se ao menos fosse Zen a sério, mas não, é mesmo ignorância/medo do sentir intenso.

Éclair

textura disse...

Quando só cansado destes mergulhos o homem olha os seus membros e entrevê a sua utilidade. É uma forma de vida essa a da paixão, a mais próxima dos movimentos naturais do homem. É como seria sem grilhões, sem séculos de história, sem a promiscuidade de prédios altos. Só podemos entender o epicurismo sem a tragédia, sem o limite, sem a falência de valores. Paixão precisa-se. Vivi poucos anos e quando ouço os que tais "relax, é na boa", uma náusea preenche-me. É mesmo medo.