sábado, janeiro 29, 2005

A escrita, o lugar de perdição

A última frase do meu post anterior despertou-me para a lembrança desta escrita diária, nem sempre fecunda, muitas vezes arranhanço. Tensão. É aqui que me perco, aqui me encontro e encontrando-me, revelo-me. Comecei a escrever um diário um pouco depois de ter lido o de Anne Frank. Teria os meus quinze, dezasseis anos. Um dia, aos dezoito anos, rasguei tudo o que tinha escrito, inclusivé um romance que iniciei, veja-se lá, quando fui ver o primeiro Rocky, de Silvester Stalonne. A história, poderia lá ser outra, era a minha. Raparigo nado e crescido numa vilória, que um dia ruma a Lisboa, à grande capital. António, assim se chamava, era de Arneiros, estudava em Freixianda, e deliciava-se todos os dias no Rio Nabão. Escolhi o nome da terra sem nunca lá ter estado. Abri o mapa, na mesma noite em que vim do cinema, a mim ou é de repente ou não é quase nunca, e pousei o dedo aleatoriamente em cima dele. Arneiros. A terra mais próxima seria Freixianda, creio. Ali o coloquei a estudar. O romance disfarçado de diário foi crescendo. Coloquei lá todos os meus amores perfeitos. Era um jardim aquele romance. Um dia, teria feito os meus dezoito anos, estava em cima do meu beliche, reparei que tinha a cabeça a rebentar com quimeras, sonhos, fantasias. Sempre fui do ar, da evaporação, do éter, tão sempre como fui e vivi perto dos cheiros de uma terra prenha. A emprenhar-se assim nos meus sentidos grávidos de tudo. Tive medo. Se continuasse a ser mais alguma vez o John Fitzgerald Kennedy Junior, aquele que abria o peito e voava como o Super Homem, distribuindo gaitadas e berlaitadas por todos os sacaninhas que me infernizavam o quotidiano, beijando todas as moçoilas por quem me sacudia de olhares plátanos, talvez não pudesse voltar à casa partida sem passar pela casa dos loucos. Tive medo. Rasguei as quatrocentas páginas dos cadernos de apontamentos, das folhas de papel almaço, do meu diário. A escrita era o lugar onde me perdia.

3 comentários:

Anónimo disse...

2ª pergunta (vamos ver se esta é respondida...):
Blogar não tirará um bom bocado das energias para a escrita que tem princípio meio e fim, aquela que depois de devidamente "censurada", FICA?
É que um blogue parece-me uma meia-conversa que exige demasiado tempo.

Éclair

trutasalmonada disse...

Leio o que escreve, encontro-me e reencontro-me, eu e os outros, eu que vivo por mim e pelos outros. Respeito este sentir e agir mas lamento que cada um não possa deixar-se ser com tudo o que contem e expressa, sem ter que deitar fora, tudo é precioso como cada particula indispensável do oxigénio que respiramos.

mfc disse...

Há alturas na vida em que somos impelidos a fazer cortes. É assim o crescimento...
Mas quantas vezes olhamos para trás e fazemos aquele som com a língua a bater nos dentes de desconsolo!