sexta-feira, janeiro 21, 2005

Manhã de ouro e de cetim na minha aldeia

Desço a minha rua em direcção ao Martim Moniz, o meu caminho de sempre. Ao dobrar o Paraíso do Calçado a minha visão costumeira. A Praça da Figueira, assim, ensolarada. Um carteiro de giro está no meio da rua, alguém à porta de uma loja o chama agitando uma carta na mão. Enganou-se, é a menina ali da perfumaria, ouço, na passagem. Lembro-me rapidamente dos meus tempos de carteiro de giro, quando fazia as ruas da 1000. Era o tempo do meu primeiro amor, começei a amar muito tarde mas tive a ventura de ter logo ali um grande primeiro amor, também me ocorre, já vou quase no Rossio, chegava a casa dela e cantava-me o carteiro do António Mafra (antes da sua revisitação pelo Sérgio Godinho), era a minha rapariga campo e cidade, tinha os ares e as cores das encostas do Douro, da Régua mas tinha a vida da cidade-cidade, eu escrevia-lhe cartas, livros de capa negra comprados ali numa papelaria de Alcântara. E amava-a, abriamos muitas vezes a noite em duas, metade para mim, metade para ela. No dia seguinte era um carteiro meio estremunhado e olharento que pegava no seu saco, ela metia artigo quarto. Os meus colegas de giro protegiam-me. Chegava lá já tinha as ruas divididas, era só ir buscar os registos. Eles protegiam-me. Agora é que me lembro, aquele caboverdiano dengoso e tranquilo e aquele velho carteiro impregnado em catarro e em imprecações, protegiam-me. Tantas vezes o faziam. Só agora é que me dou conta disso. Ao inicio da Rua do Carmo despacho esta alembradura, pergunto-me, os bichos serão como nós? Também terão assim estas memórias intrincadas? Aquele cão rafeiro com ar de abandonado, tem em si a nostalgia de uma felicidade anterior, pretérita? Seremos, no universo dos vivos, os únicos que engalanam as ruas que já viveram? Que se detém numa dúvida, num tremor? Temor. Somos? Atiro o passo para a Rua Garret, estou quase lá. A felicidade com que me ocorrem os amores antigos atira-me para o desejo de amores presentes, futuros. A vontade de me afuturar nos seus braços de mulher. Quando chego ao Carmo percebo que esta vida não será sempre assim que a viverei. E não falo da vida, esse dom, esse privilégio-constrangimento de respirar o mesmo ar. Falo do modo como vivo a minha vida. Este sair de casa e sentir-me numa aldeia, olhando da minha varanda as ruinas do Carmo onde agora estou, volvidos meia dúzia de passos nesta Lisboa de sol e de cetim. Mais cedo ou mais tarde cansar-me-ei de ser feliz e irei morar para os arredores da cidade, lá onde os desejos não me queimem e o ardor não me desfaça.

3 comentários:

Anónimo disse...

Tu, nos arredores? Credo!

Éclair

FM disse...

:-)
Abraços,

Anónimo disse...

Quim, fico sempre sem palavras de te ler. Qualquer comentát será demasiado prosaico. Mas é preciso dizê-lo...
Leonor