sexta-feira, fevereiro 04, 2005
Em Busca da Verdade
O assunto da Casa Pia não tem sido de facto o meu tema favorito. Principalmente porque sinto que na avaliação que faço do caso há uma componente subjectiva cuja origem não consigo facilmente descortinar.
O que me tolda o raciocínio são vários factores, de peso desigual e de dificil mesura. Como uma simpatia mediática que tinha por personalidades da lista de envolvidos , como Carlos Cruz e Paulo Pedroso(este também, simpatia política); a antipatia que tinha pela latitude com que é aplicada a prisão preventiva; o conhecimento concreto que eu tenho do trabalho com crianças e adolescentes em situações muito semelhantes às dos miúdos da Casa Pia; a fonte de irracionalidade que continuamente alimentou os média e a opinião pública sobre este caso; o amadorismo de muita da investigação policial que não resistiu às suspeitas da sua manipulação; a atitude do juiz da Relação que inicialmente conduziu o dossier; o ataque político a figuras como Ferro Rodrigues no âmbito do processo; e, finalmente, o verdadeiro desprezo que me merece a pedofilia, não tanto enquanto prática sexual, já que aí me surge como uma doença do afecto, mas por ela não poder subsistir sem geralmente estar associada ao exercício da violência, da exploração do mais fraco pelo mais forte, da prepotência e do envenenamento das relações sociais através do silenciamento, da chantagem, do suborno, da pressão social e política.
Vem isto a propósito de um post, construido num fino humor, colocado pelo Luís, sobre o despacho da juíza presidente do colectivo que julga o processo da Casa Pia, Ana Peres, ao reafirmar a intenção de autorizar novas perícias pelo Instituto de Medicina Legal (IML) à personalidade de oito das vítimas do processo, solicitada pela generalidade dos arguidos e contestada pela comissão de médicos e psicólogos que acompanham os jovens. E também do comentário Bruno do Avatares. Todo este encadeado me pôs a pensar.
O que me despertou o pensamento foi também o comentário do Bruno. Que é também de pontaria refinada quando diz: " É a saída impossível de um ciclo vicioso que seria hilariante se não fosse tão grave: se vivem na casa pia, sabe-se em que condições... foram violados, talvez seja natural que tenham comportamentos anti-sociais, depressivos e afins. Mas se têm esses elementos pessoais e biográficos então o testemunho mão é válido."
1. Os miúdos da Casa Pia.
Em primeiro lugar uma das poucas ideias muito claras que tenho sobre este processo: para mim, enquanto cidadão, e para o que está em causa no processo da Casa Pia só não é totalmente irrelevante se os miúdos da Casa Pia que testemunham no processo têm um "carácter aberrante e uma consciência moral desconhecida na morada indicada, se sofrem de perturbações psiquiátricas e outras que afectem a memória, se produzem uma deficiente avaliação da realidade ou se não têm juizo crítico, se são sugestionáveis ou manipuláveis, se têm comportamentos anti-sociais, depressivos, paranóicos, bizarros, histriónicos, patologia tendente a mentira e fabulação" porque, a verificar-se isso, por um lado, mais agrava, no meu entender, a dimensão do crime de que foram vítimas, e por outro, pode lançar justas dúvidas sobre alguns testemunhos.
Porque para mim a dimensão do crime, que para mim é público, a nós todos, cometido na Casa Pia não terá atenuante alguma com as variações de humor, carácter ou personalidade das crianças. Aliás, qualquer estratégia da defesa que passe por apoucar, humilhar, ridicularizar o carácter das crianças tendendo a obter uma diminuição do crime seria uma estratégia tão canalha quanto suicida.
2. Perícias psicológicas
Este nome assusta. O detalhe do despacho da juíza, pela minúcia, parece de um sadismo atroz. Por outro lado, como refere o Luís com ironia, também o colectivo deveria ser sujeito à perícia psicológica. E não só, os próprios arguidos. Configurando-se a pedofilia como uma doença, não seriam completamente descabidos. E também nós, que estamos deste lado do circo romano.
Por isso mesmo, à primeira vista pareceu-me da maior sensatez que as testemunhas "possam ser ouvidos em audiência e só mediante dúvidas daí decorrentes possam ser eventualmente requeridas novas perícias". Ou seja, o que a comissão defende é que apenas no caso específico possa ser requirida uma perícia psicológica específica. E desta vez não como um recurso atribuido pelo tribunal, através da juíza, de um modo geral, mas como uma arma de arremesso contra um determinado testemunho em particular. Conhecendo a amplitude com que as defesas constroiem as suas estratégias, e não sendo validada senão particularmente cada perícia, é fácil temer o que isso podia significar. Cada vez que a defesa quisesse fazer desacreditar um determinado testemunho, mandava-a ir à perícia. Sendo que aí o espaço de intervenção do tribunal, quer dizer, da juíza, seria extraordinariamente limitado.
E aí sim, deveremos ouvir a Comissão" as perícias poderão representar uma forma clara de abuso emocional de rapazes já vítimas de múltiplas situações traumáticas "e constituem "um alto risco para o seu bem estar e equilíbrio psíquico".
3. O que devemos esperar de uma comissão de acompanhamento das testemunhas?
O que me parece é que estamos diante de um jogo intrincado em que explodem várias tecnicidades, especialmente a de âmbito médico e a de âmbito jurídico, que muitas vezes não sabem onde devem confiar-se às mãos da outra. Não estou a dizer que a juíza fez bem ou fez mal. Estou a dizer que é viável uma leitura de que ela tenha agido no pressuposto de que a maior garantia para a defesa das vitimas - seja elas quais forem- seja a de ela manter intacta a sua capacidade de intervenção no decorrer do julgamento. Terá a partir desta autorização toda a legitimidade para, futuramente, as injustificar como estratégia pontual e recorrente de uma defesa menos escrupulosa. E, para além disso, que ao permitir que sejam feitas de uma forma geral, a todo o grupo ela está-lhes a conferir-lhes uma neutralidade que deve ser trabalhada pelo grupo de acompanhamento como um factor de fortalecimento das testemunhas. Repito, não estou a dizer que as coisas se passam assim. Estou a dizer que se podem passar assim.
4. Catalinada
Quando a comissão de médicos e psicólogos diz que as novas perícias psicológicas às vítimas "podem, seguramente introduzir a ideia de que o tribunal não tem, para estes rapazes, uma posição de neutralidade" e "expressar uma noção de desconfiança 'a priori', facto que alguns já expressaram aos seus médicos e psicólogos", estão a utilizar uma técnica a que chamaria catalinada, em homenagem à sua autora, Catalina Pestana, e que se traduz numa pressão que extravaza o âmbito de actuação da comissão que deverá, em principio, servir para fortalecer o grupo de crianças e jovens testemunhas e vitimas de abuso pedófilo e não para tentar influenciar os diferentes passos processuais do julgamento.
Até porque a argumentação é nitidamente infantil, parece-me, o que nos apercebemos quando a invertemos: " a recusa das novas perícias psicológicas às vítimas "pode, seguramente introduzir a ideia de que o tribunal não tem, para estes rapazes, uma posição de neutralidade" e "expressar uma noção de confiança 'a priori'".
Ou seja, o que se espera desta comissão é que ajude estas crianças e jovens a perceberem que a observância dos mecanismos processuais que garantem à defesa o recurso aos procedimentos que esta entende indispensáveis à realização do seu trabalho, não é de maneira nenhuma um descrédito em relação a eles e que o caminho da coragem e da dignidade que escolheram ao testemunharem exige deles ainda mais determinação. E depois que trabalhem com eles enquanto grupo, enquanto pessoas.
5. Exigir/Confiar
O que tenho tentado dizer é que se queremos sair vivos disto enquanto país devemos fazer um exercício simultâneo de exigência e confiança. Devemos exigir que as nossas comissões de acompanhamento acompanhem. E devemos confiar que o fazem. Devemos exigir que a nossa justiça (leis e seus executores) seja capaz de julgar um crime tão intrincado. E devemos confiar de que ela será capaz de o fazer. Devemos exigir a verdade das nossas testemunhas. E deveremos confiar que o farão. Tudo o que seja menos do que isto é um perigoso jogo face à busca da verdade. Querer protejer as testemunhas agora, querer poupá-las agora, poderá ser misturar o falso com o verdadeiro, o real com a efabulação. Elas não precisam que sejam aqueles culpados. Nem o julgamento precisa de que aquelas testemunhas tenham sido todas elas as violadas na carne. Terão-no sido todas no espírito, nos seus sonhos, na capacidade para ambicionarem ter um dia uma vida como as outras pessoas. Protejamo-las não tendo piedade delas, mas tornando-as fortes, robustas. Mostrando-lhes que quando temos técnicos a acompanhá-las eles são uma extensão do nosso abraço. Da nossa presença.
5. Os novos heróis
Disse que tinha tido simpatia mediática por Carlos Cruz e Paulo Pedroso. É verdade. Ainda hoje quero que eles sejam inocentes. Aprendi a ver televisão com o Carlos Cruz. Salvas as devidas porporções, vê-lo ser acusado de ser pedófilo foi como se visse o Super-Homem enveredar pelo submundo do crime. Paulo Pedroso foi um excelente ministro e cruzei-me com ele algumas vezes em reuniões com militantes socialistas. Soube-me bem que os dois tivessem sido libertados e pudessem organizar a sua defesa.
A liberdade faz bem às pessoas e só devemos temer quando a restringimos. Mas não posso deixar de confessar que hoje, quando olho o banco dos reús do processo Casa Pia, aqueles miúdos que foram um dia falar com Ramalho Eanes, com Teresa Macedo, aqueles miúdos que hoje se sentam no tribunal para testemunhar e desmanchar uma das mais terríveis redes criminosas, aqueles miúdos que sei que podem ser efabulatórios, anti-sociais, deprimidos, violentos, são os heróis dos meus dias de hoje.
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