O mundo deu uma volta sobre si mesmo

Bastou uma volta pelo bairro para perceber que nada estava igual. As simpáticas velhotas da Graça, que gostam de passear pelo dia com os seus sacos do Pingo Doce para-a-frente-e-para-trás-só-mais-um-dedo-de-conversa-ai-aquela-rapariga-do-3.º Esquerdo-é-tão-porca-não-limpa-as-escadas, eram por eles arrastadas. Os sacos levavam as simpáticas velhotas a tiracolo, com os braços unidos com uma guita a fazer de asas, a cabeça abandonada para trás a flutuar, invariavelmente colorida com aquele tom arroxeado que as cabeleireiras lhes garantem ser o melhor para a sua idade. No avental levavam as compras: fruta, legumes, amaciador para sacos de plástico. Os carris deslocavam-se a uma velocidade estonteante por cima das fileiras de eléctricos alinhadas nos dois sentidos, e em cima dos carris passeavam Serras da Estrela, Boxers, Caniches, todos empenhados em equilibrar as suas quatro patas naquelas duas linhas de superfície, sem perderem de vista e da trela os humanos a seu cargo (a maioria com açaime). Sei o que estão a pensar; e sim, em vez da esplanada estava ali o Cristo-Rei, sentado numa cadeira e de braços fechados - melhor, com um braço ligeiramente flectido a fazer carícias distraídas no seu galão de máquina. O Cristo-Rei olhava fixamente para o Tejo, que passava por cima da ponte 25 de Abril com o ruído e a força de uma cascata, e em cima dessa cascata flutuavam aviões desvairados, tentando não encher de água as turbinas - toda a gente sabe que equivale a morte certa. No céu voavam navios - e o Castelo revelava não ser mais do que um castelo-no-ar. Um castelo de areia, essa mesma que nos conheceu.