sexta-feira, março 18, 2005
Que mundo é este que por aqui vem?
Desde vinte e nove de Junho que respiro o mesmo ar. São quase dois anos. De escrita diária, é isso que um blogue é, um texto que diariamente vai engrossando. Escrevo sempre o próximo post. O que escrevo agora só tem sentido porque sabemos, amanhã estarei, estaremos aqui.
Não serei das pessoas com mais surpresas em relação àquilo que são os fascínios do mundo da expressão própria. Antes de chegar à blogosfera, em quantidades desporporcionadas, não só já me tinha experimentado nos diversos meios de comunicação e expressão como tinha animado oficinas de trabalho expressivo. Onde me cabia a fortuna de acompanhar cada um dos participantes para esse momento luminoso que é o do seu encontro com a expressão de si mesmo.
Eu sou daqueles que tiveram a sorte de assistir ao laborioso e incandescente trabalho que a expressão faz a um ser humano. Como através dela ele nasce, ele irrompe, ele se transforma, ele exulta de riso e humanidade. Quando comecei a fazer teatro era um tempo em que havia muitos happenings e experiências para-teatrais. Trabalhei uma vez com J., um rapaz que tinha acabado de sair do Júlio de Matos, de uma experiência violentíssima de um internamento forçado devido ao consumo de estupefacientes. Era doloroso trabalhar com ele. J. era um tipo criativo, sensível, imaginativo, dado á música, à pintura, ao teatro. Era lento o seu transformar pelo seu próprio desenrolar expressivo. Mas era firme. Os únicos verdadeiros momentos de alegria, de desinibição frente aos seus próprios medos e temores conheci-os aí, em cima de um lençol estendido na Rua Augusta a que chamámos palco.
Alguns anos mais tarde fui assistente de encenação do João Silva num espectáculo com actores do teatro universitário e pessoas que tinham um percurso de acompanhamento psiquiátrico. Lembro-me tão bem das primeiras sessões, com aquelas almas todas presas, agrilhoadas aos medicamentos, às terapias, aos não sei se posso, pois é como puder ser, por nós tudo bem, a gente já cá está mesmo não é, não podemos sair, isto é uma moinha na cabeça que nunca nos abandona. Como me recordo da desenvoltura de espiríto, de decisão, que assumiam passados uns meses de trabalho em conjunto. É uma benção poder dizê-lo, repito, sou daqueles que teve a sorte de ver o que a expressão faz a um ser humano.
É esse o meu referencial. Quando falo de um luminoso mundo da expressão é disso que falo. Não me refiro ao mundo das luzes, dos holofotes, das personagens que debaixo dos projectores não sangram, nem são o sangue. Dos nossos ícones de papelão, assim também a vida para a qual nos guiam.
E sendo assim, aquilo que pergunto é, que mundo é este que aí vem?
O paradigma de toda a nossa sociedade é o da ocultação. Escondemo-nos atrás nos nossos nomes, das nossas vestes, nas nossas atitudes sociais. Das nossas máscaras. Dos nossos ícones. Pedimos aos nossos deuses, aos nossos fetiches, aos nossos simbolos, aos nossos heróis, aos nossos ídolos, que nos representem. Que sejam a nossa presença. Nós, os ausentes desta vida, deste mundo, deste lugar onde afinal paramos.
Este processo de ocultação é um dos mais espantosos exercícios sociais já que se replica de forma automática sobre toda a vida em sociedade tendendo a criar um aparato ideológico que coloca num lado a ficção, do outro a realidade, dando às pessoas a segurança de que quando estão a representar os papéis sociais que lhes inculcam, estão a ser verdadeiros. Estão a ser gente de carne e osso. A própria produção ficcional reforça esta ideia, e não fazia aliás sentido que assim não fosse, dado que ela é faz parte desse dispositivo.
Há que por isso distinguir uma realidade que muitas vezes tende para se misturar, confundindo: esta aventura da expressão e da revelação parecendo fazer de cada blogger um criador parece inscrevê-lo numa ordem de um mundo ficcional.
Ora parece-me que este universo de gente em carne viva resulta de um trabalho muito mais revolucionário do que uma simples reocupação dos lugares de visibilidade mediática por uma horda de excluídos provindos das trevas e do anonimato social. Embora esse fenómeno aconteça nos meios de comunicação de massa tradicionais e possa ser uma forma de lermos o que também por aqui se passa, talvez seja uma maneira muito empobrecida de analisarmos o fenómeno da blogosfera.
A nossa presença aqui pode não ser a libertação do homem mas corresponde a um outro paradigma, o da revelação. O da expressão. Não tanto o do exibição. Há também lugar para o exibicionismo, mas seria insensato não reconhecer que o que caracteriza este lugar é maioritariamente preenchido com a aventura da revelação de si mesmo.
A forma como se procede a essa aventura é muito diferente. E há limitações tecnológicas ainda, embora alguns de nós já as tenham rompido. A maioria edita-se a si próprio nas possibilidades que o Blogger lhe fornece. O importante é sabermos perceber que o mundo da revelação reposiciona o lugar do homem não no cosmos, mas na sua humanidade.
Não há dúvida que há aqui um trabalho de encenação do eu. A minha condição de ser em carne viva não sendo uma ficção, é uma oportunidade que eu tenho de constituir a minha vida enquanto ficção e realidade. Sendo que estou inserido numa comunidade que se oferece à mesma prática. A minha presença aqui diante de um écran com o qual me relaciono como se fosse um espelho, é decisiva porque me fornece uma autonomia que tende para me afastar da representação social e política.
Eu não o percebo mas isso acontece. A essência da representação assenta na ideia de relação entre representado-representante que se baseia numa certa transferência das propriedades de acção do representado para o seu representante.
Todo este aparato funciona em cadeia. A sociedade da representação é um modelo em que uns fazem em nome dos outros. Que fazem outras coisas, mas não esta, tão simples: representarem-se. A ideia mil repetida de que a participação dos cidadãos na política não se esgota no voto é a melhor confirmação de que a nossa prática social tende para o afunilamento da acção de cada um na acção de se fazer representar. As nossas democracias tendem a criar cidadãos politicamente obesos, discipiendos, letárgicos cuja única actividade de cidadania é o fazerem-se representar. E mesmo essa pequena acção é recusada por um crescente número de pessoas. Todo este aparato funciona em cadeia e o dispositivo reproduz-se de uma forma geral. O facto de que um crescente número de pessoas se auto-excluir do processo de representação, não o coloca directamente em causa. Indirectamente sim, até porque o enfraquece. Mas não directamente. Os cidadãos eleitores e os cidadãos abstencionistas comungam no mesmo sistema de representação. Continuará a não haver vida social para lá do processo e do sistema de representação.
O que eu quero dizer, e é melhor assumir que não me é fácil entender o que eu próprio digo, é que se o sistema da representação tende para a transferência da acção dos representados para os seus representantes, o que, em linguagem ciber quer dizer que os representantes passam a estar online no momento em que os representados ficam offline, o sistema da expressão e revelação de si mesmo tende para a permanência online de todos os que fazem parte de uma mesma comunidade. Isto que eu escrevo só tem sentido para uma pequena comunidade de bloggers dos quais tacitamente faço parte porque amanhã eu e eles vamos continuar aqui.
Esse é um primeiro aspecto, a presença. A re-presentação não tem sentido quando os individuos continuam presentes, uns diante dos outros.
O segundo aspecto, é o do trabalho da representação que é feito a todos os níveis, político, cultural, religioso, social. O trabalho da representação assenta num labor de concentração de representados. É um trabalho convergente. É isso que torna possível o trabalho de representação, a partilha de uma ideia comum. Sendo que partilhar uma ideia, na sociedade de representação, é aderir a uma imagem de uma ideia. E aderir a uma imagem de uma ideia é também configurar-se de acordo com essa imagem. No processo de representação o representado dificilmente sobrevive fora ou em tensão com a ideia com que se fez representar.
O mesmo principio de dependência anima representados e representante. Nós constituimos uma luz onde nos revemos e é essa luz que nos dá alguma visibilidade existencial na sociedade da representação. Nela os representados carecem de simbolos,imagens e de ideias que os representem. Na arte, na politica, na religião, na vida social, na cultura, no desporto. Sem elas inexistem. Numa sociedade que assenta quase exclusivamente sobre o trabalho da representação, não se existe fora dela. Esta condição é tão válida para representantes como para representados.
O que quer dizer também, segundo aquilo que sabemos da adaptação das pessoas aos papéis sociais que se esperam delas, que elas se conformam, moldam e configuram a essas exigências da sociedade da representação. Todos os dias cidadãos ocultos são tolhidos nos seus passos anónimos por microfones de jornalistas que, fazendo-os representantes de alguma coisa, conivem com essa imagem de representação. "Vamos falar com um taxista, ou bombeiro, ou limpa-chaminés", diz o jornalista, "o que é que o senhor enquanto taxista, ou bombeiro, ou limpa-chaminés tem a dizer sobre...", e lá cai em cima de um pacato taxista, ou bombeiro, ou limpa-chaminés, que se configura o melhor que sabe e pode para poder representar os taxistas, ou bombeiros, ou limpa-chaminés. Na sociedade da representação as pessoas interiorizam de tal forma esta tarefa representativa que já se tornou uma vulgata a expressão:"- Eu nem falo por mim falo enquanto pessoa...", o que é um jogo de legitimação bizarro de cada um com a sua condição.
Passar-se-à o mesmo na sociedade que emerge da nossa presença aqui? Parece-me que não. O que distingue este nosso mundo é que ele nos coloca gradualmente no plano do irrepresentado. Primeiro pela reiteração da nossa presença. Depois porque a identidade que ao longo de quase dois anos se foi criando através da sigla JPN tende para a divergência e é dela que se alimenta. É possível eu manter-me aqui e partilhar afectos, textos, comentários com outros bloggers como o tenho feito sem que para isso haja algum trabalho de convergência.
Quando pergunto Que mundo é este que por aqui vem? não estou a a fazer a apologia desse mesmo mundo. Primeiro do que tudo é insensato fazer a apologia do futuro, principalmente quando ele já está entre nós. Depois, o mundo do irrepresentável para o modo de ver das nossas democracias actuais tanto pode significar a liberdade como a escravidão. A luz, como as trevas. A humanização como a desumanização.
Que mundo é este que por aqui vem?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
A questão é: porque fechou usted, monarca absoluto, as portas do seu castelo? O blog pode despoletar mais "revelação" do que "representação", maybe, mas é igualzinho ao mundo "lá fora". Mas não sei se percebi bem, estou demasiado constipada... :(
P.S. Lá se escreveu mais um "homem" representativo de nós todos...grrrrrr
Éclair
Primeiro não fechei portas de coisa nenhuma e muito menos do meu castelo. Segundo o blogue também pertence ao mundo lá de fora, assim entendido. Terceiro, vê se curas a constipação antes do fim do mês, salsera...
ainda bem que nos devolveste a possibilidade de apresentar ou re-presentar-nos por aqui.
dançou-se bem, hoje, mas poderia ter-se dançado maior.
;-)
há palavras, nada mais. ou nada menos, talvez.
Enviar um comentário