Desço a Rua da Voz do Operário e não sei se por causa do nome da rua,
do seu eco, da ressonância que tudo isso tem, também de um belo texto do Jorge Silva Melo sobre a Biblioteca da Voz do Operário lembro-me
da última vez em que gritei um slogan revolucionário, da última vez
que levantei o braço no ar, a derradeira e última vez em que olhei o meu irmão, o meu semelhante, o meu camarada, companheiro, e nesse olhar preso por um fio descortinei um valente, um herói, um comprovativo selado e carimbado de que a humanidade existe.
Desço a Rua da Voz do Operário e já não sei bem porque razão, vem-me à boca um amargor de palavras ácidas, inválidas, caducadas. Eu sou apenas aquele que constata. Aquele que perdeu há muito tempo, com a memória, a capacidade de se indignar. De se revoltar, de dizer. Eu sou apenas aquele que constata, que comprova, que certifica. Aquele que sem sabedoria, diz que não. Ou que sim, que está ausente.
Desço a Rua da Voz do Operário e desço-a como quem sobe íngreme calvário alheio. Como se não tivesse de ser o humano que em mim se incrustou. Como se o plano inclinado em que se tornou a vida que vejo não o fosse mesmo, apenas um erro de perspectiva, um cansaço, um tremendo e pavaroso cansaço de me fazer no que não me faz. Como se onde eu ponho renúncia, incapacidade de ver, de ir, de atingir, outros pudessem colocar o renovo que a vida terá. Como se fosse apenas uma questão de riso e de alegria e em tendo-os, pudesse surgir novamente o mundo projectado. Como se este não estivesse enfermo e eu sim, animado por um padecimento de espírito vociferasse com toda a desmesura de que o pensamento pessimista é capaz.
Desço a Rua da Voz do Operário como se descesse a um lugar habitado pelas trevas, pelo negrume, pela ausência e como se tudo isto não fosse apenas porque já não me lembro, já não me ocorre, quando foi a última vez que cantei a Internacional, gritei Morte ao Fascimo, Abaixo a Exploração da Classe Operária, O Povo Unido Jamais Será Vencido, porque já não me lembro, não me ocorre, não me recordo, esqueci-me de quando entrelaçei um braço com outro braço na manifestação operária no Estádio 1º de Maio em Lisboa e, na mole acesa pelo delírio, pelo anacronismo militante, proferimos as palavras mais sábias de toda a nossa vida.
Desço a Rua da Voz do Operário em silêncio. Ao passar na escola vejo as crianças nos seus bibes coloridos a sairem para a rua. Invejo-as por momentos. Elas não precisam de esquecer. Elas não precisam de esquecer para não saberem.
[no espectáculo Prometeu Agrilhoado, Libertado]
domingo, março 13, 2005
Rua da Voz do Operário
Desço a Rua da Voz do Operário e não sei se por causa do nome da rua,
do seu eco, da ressonância que tudo isso tem, também de um belo texto do Jorge Silva Melo sobre a Biblioteca da Voz do Operário lembro-me
da última vez em que gritei um slogan revolucionário, da última vez
que levantei o braço no ar, a derradeira e última vez em que olhei o meu irmão, o meu semelhante, o meu camarada, companheiro, e nesse olhar preso por um fio descortinei um valente, um herói, um comprovativo selado e carimbado de que a humanidade existe.
Desço a Rua da Voz do Operário e já não sei bem porque razão, vem-me à boca um amargor de palavras ácidas, inválidas, caducadas. Eu sou apenas aquele que constata. Aquele que perdeu há muito tempo, com a memória, a capacidade de se indignar. De se revoltar, de dizer. Eu sou apenas aquele que constata, que comprova, que certifica. Aquele que sem sabedoria, diz que não. Ou que sim, que está ausente.
Desço a Rua da Voz do Operário e desço-a como quem sobe íngreme calvário alheio. Como se não tivesse de ser o humano que em mim se incrustou. Como se o plano inclinado em que se tornou a vida que vejo não o fosse mesmo, apenas um erro de perspectiva, um cansaço, um tremendo e pavaroso cansaço de me fazer no que não me faz. Como se onde eu ponho renúncia, incapacidade de ver, de ir, de atingir, outros pudessem colocar o renovo que a vida terá. Como se fosse apenas uma questão de riso e de alegria e em tendo-os, pudesse surgir novamente o mundo projectado. Como se este não estivesse enfermo e eu sim, animado por um padecimento de espírito vociferasse com toda a desmesura de que o pensamento pessimista é capaz.
Desço a Rua da Voz do Operário como se descesse a um lugar habitado pelas trevas, pelo negrume, pela ausência e como se tudo isto não fosse apenas porque já não me lembro, já não me ocorre, quando foi a última vez que cantei a Internacional, gritei Morte ao Fascimo, Abaixo a Exploração da Classe Operária, O Povo Unido Jamais Será Vencido, porque já não me lembro, não me ocorre, não me recordo, esqueci-me de quando entrelaçei um braço com outro braço na manifestação operária no Estádio 1º de Maio em Lisboa e, na mole acesa pelo delírio, pelo anacronismo militante, proferimos as palavras mais sábias de toda a nossa vida.
Desço a Rua da Voz do Operário em silêncio. Ao passar na escola vejo as crianças nos seus bibes coloridos a sairem para a rua. Invejo-as por momentos. Elas não precisam de esquecer. Elas não precisam de esquecer para não saberem.
[no espectáculo Prometeu Agrilhoado, Libertado]