quarta-feira, abril 06, 2005
Factor 60: filtro total
Nenhuma possibilidade de afago de vento pelas mãos, cabelo que é onde primeiro se sente, os lábios húmidos ficam frios mesmo com o ar de raspão, os olhos que se fecham tão bem quando a velocidade é intermédia entre demasiado e a brisa. Podia ser um filme, o que eu estava a presenciar. Como o vento tardava, era uma fotografia, espessa ao suspender-me ali a vários metros de distância, num ponto sobranceiro a um pátio. Não seria um filme, porque a pessoa que dormia naquela banco de madeira respirava solitariamente para atingir o limiar que prepara o ouvido humano para o audível. Não acordou, mergulhada num voo em direcção ao sol. A árvore criteriosamente nascida num canteiro lateral não tinha folhas, mas muitos braços, sendo já Primavera, os cotos sem flores, o homem sem cabelo.
“Estes doentes são capazes de ficar o dia todo aqui, ao sol”.
Muitos de olhos fechados, o de boina ouvia telefonia a perguntar a cada um que via se sabia que o Papa tinha morrido, outro com uma pedrinha na mão ensimesmado a ladainhar.
O sol ali nascera para todos hoje, como sempre, espaço aberto onde não chega o vento, a escuridão existe num fechar e abrir de olhos e neste pátio podem escolher fechá-los. Fazem-no.
“Algumas vezes não conseguimos evitar-lhes as queimaduras solares, mesmo com várias camadas de protector.”
Aquele homem encolhido e pequeno no banco a dormir ao sol, a sonhar que estava perto da combustão pelo esgar de regozijo, a árvore nua e perfeita no enquadramento da fotografia, que fosse cinema, durante meia hora, nada se alteraria um milímetro. Não havia vento. Os cotos parados.
Um grito afiado não me dilaceraria mais.
Na lacuna da memória é tudo escuro e frio e ventoso?
A lembrança desse homem são fragmentos, por isso ali está naquele pátio.
A memória desses homens vai-se desfazendo como nuvens de algodão num céu cada vez mais limpo. Ali estão naquele pátio.
Marco encontro com os dramas de um pátio sem vento, onde a noite chega inesperadamente e o dia é curto se solarengo.
“Estes doentes são fotossensíveis. Têm uma atracção pelo sol.”.
Fotossensíveis, não dementes.
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8 comentários:
dementes, não! têm frio! um frio terrível que lhes vem da incapacidade de lidar com este mundo gelado. e todo o SOL é pouco para nos aquecer a alma quando nos gela o sangue nas veias, quando nos sentimos rôxos por dentro, só o SOL o SOL em maiúsculas te pode aquecer um bocadinho. um bocadinho ontem, um bocadinho hoje, outro amanhã... um bocadinho aqui, um bocadinho ali... e em cada bocadinho que o SOL se transforma em mais calor, mais tu foges da sensação de alheamento e te aproximas do sentimento pleno de encontro dentro de ti. só quem sente este frio, pode entender este SOL.
quando vivia em lisboa a minha casa ficava perto do hospital julio de matos. tive um amigo de lá, o professor, como lhe chamávamos. na realidade chamava-se agostinho. era louco. diziam. e nós na nossa inocência de adolescentes respondíamos mas recita poemas e conta histórias sobre homens e mulheres, histórias de amor, histórias de dor... diziam que tinha ficado assim depois de um desgosto de amor. pois. pensava eu. quando fazia frio vinha embrulhado num cobertor do hospital. quem sabe se já morreu... sento-me muitas vezes ao sol, a ler, nos degraus de uma qualquer praça, pode até ser de lisboa, as árvores por vezes têm cotos onde a primavera não brota. poda dizem. a mim recordam-me sempre os braços decepados de alguém. e quando está frio, apetece embrulhá-las num cobertor... ( emocionaste-me )
filtro total: usar o filtro total: protecção sessenta: o filtro total não me protege: acontece-me ouvir o médico aconselhar: factor de máxima protecção: é importante: para prevenir:
** eu quero morrer
com uma overdose
de beleza** dizia o al berto. não usava filtro. nem factor sessenta...
ui! como eu gostava de conhecer o al berto ;-)
morrer de uma overdose de beleza consegue ser ainda melhor do que morrer em beleza. ou no b.leza bem embelezada.
ps: o problema do sol é o mesmo que o do cigarro. dizem que FUMAR MATA. que eu saiba, VIVER também, ou não nasceríamos nunca para morrer mais tarde. viver escondido do sol deve ser uma coisa cinzenta e lamacenta.
Animamos a natureza com humana insistência, vivemos isso desde que deixámos de acreditar em monumentos colossais que chegassem ao céu.
A perplexidade é uma forma de comoção, a minha é sempre sempre retardada; fico a remoer incomodada, não consigo agir, uns dias depois salta tudo cá para fora.
Muito obrigada pela (fotos)sensibilidade deste Factor 60 -- tem sido inspirador:)
Éclair
eu sei que nos vimos ontem mas só hoje é que te li. fica tão bonito este respirar com esta luz que aqui deixaste.
Levar-te à boca
Beber a água
mais funda do teu ser
Se a luz é tanta
Como se pode morrer?
Eugénio de Andrade
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